A outra eleição americana
Na terça-feira não se decide só quem vai ser presidente dos EUA. A votos na Califórnia está uma proposta que vai influenciar decisivamente o futuro da economia informal.
Na Califórnia, Joe Biden vai de certeza ganhar os votos necessários para o colégio eleitoral. Onde há dúvidas é no resultado da Proposta 22, uma emenda legislativa que quer desobrigar as empresas da economia informal de pagarem a compensação devida aos seus trabalhadores.
Em janeiro a nova legislação do trabalho que passou na Califórnia determinou que empresas como a Uber e a Lyft teriam de tratar os seus funcionários como tal, garantindo salário mínimo, seguro de saúde e outros benefícios; agora são as próprias empresas a lutar por uma correção que os liberte dessas obrigações, em nome da informalidade da economia. Por isso o que estará no boletim de voto na terça-feira é muito mais do que a sobrevivência da Uber ou da Lyft. É a forma como entendemos o trabalho nas sociedades e como queremos partilhar responsabilidades e direitos na nossa organização social.
Estas empresas estão acima de tudo a concorrer contra a imagem que fizeram passar de si mesmas ao longo dos anos. Assumindo-se como porta-estandarte da nova economia, quiseram sempre ser vistas como híper-bem-sucedidas, reforçando um estatuto que não corresponde à realidade, que no caso das empresas que nasceram com a chamada gig economy é mais artificial do que real. Uber e Lyft, as maiores desta área, têm valorizações de 70 mil milhões de dólares em bolsa mas nunca deram lucros – e estão a gastar mais de 200 milhões numa campanha cujo resultado terá inevitavelmente efeitos por todo o mundo.
Esta economia informal que basicamente trata o trabalhador como um parceiro sem o compensar dessa forma é algo que tem andado a par do crescimento de empresas que se reclamam do estatuto de plataformas. Por norma, elas implicam trabalho pago de forma irregular, ausência de benefícios, instabilidade e falta de reconhecimento – problemas agravados em países onde a proteção ao trabalho é menor.
As sondagens junto dos trabalhadores informais na Califórnia são pouco claras, mas parecem apontar para uma divisão entre o apoio à flexibilidade no caso dos trabalhadores a tempo parcial, contra os trabalhadores a tempo inteiro que exigem direitos e proteção em troca da sua condição. E o facto de tudo isto acontecer no contexto Covid-19 acrescenta uma nova camada de dramatismo: por um lado, os serviços digitais aumentaram de importância de forma dramática, sendo muitas vezes a única forma de resolver problemas logísticos; por outro lado, a falta de proteção deixa estes trabalhadores em risco acrescido em caso de doença ou de redução do serviço por causa das limitações impostas.
Existe aqui um enquadramento maior, porque se há um traço comum às grandes empresas da economia digital, ele é a desvalorização pelo trabalho humano: as que operam serviços virtuais, como Google e Facebook, crescem desmesuradamente sem necessidade de escalar as suas forças de trabalho; as que apostam na economia informal, como a Uber e a Airbnb, agregam (e exploram) os bens dos trabalhadores para mediar serviços; e os setores industriais começam a empregar mais e mais robôs, dispensando os trabalhadores humanos em nome da eficácia produtiva e das margens negociais crescentes. De tal forma assim é que mesmo os mais empedernidos capitalistas começam a considerar a importância de um qualquer formato de rendimento básico universal – porque se os consumidores deixam de ter dinheiro, deixam de poder comprar produtos e serviços. E o capitalismo, aparentemente, até sobrevive sem trabalhadores – mas não sem consumidores.
Ler mais: Um livro essencial para entender as implicações da tecnologia no mundo laboral foi escrito por Daniel Susskind, um economista de Oxford. Chama-se A World Without Work e considera que um mundo (quase) sem trabalho até pode ser algo positivo, desde que existam os devidos enquadramentos sociais para gerir uma nova era de prosperidade.
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