A participação interna de irregularidades no setor segurador

  • Patrícia Assunção Soares
  • 14 Junho 2022

A jurista Patrícia Assunção Soares antecipa a preparação para a mudança dos processos internos e mentalidades a todos os níveis das seguradoras, decorrentes de nova legislação que afeta a governance.

A cultura de transparência e vigilância assume nos dias de hoje, no seio das empresas, uma relevância inegável. Os princípios de governance procuram mitigar os riscos a que as empresas podem estar sujeitas, acarretando exigências que devem ser cumpridas, quer numa lógica interna de proteção da própria estrutura, quer numa lógica externa de salvaguarda dos seus clientes, colaboradores e demais stakeholders.

Sem prejuízo de as matérias de governance serem transversais a todo o mercado e tecido empresarial, no que às empresas de seguros diz respeito, assistimos no passado dia 31 de maio à publicação em Diário da República da Norma Regulamentar da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (“ASF”) n.º 4/2022-R, de 26 de abril, que alterou o sistema de governação das empresas de seguros e de resseguros. A referida Norma veio, não só atualizar e densificar o quadro regulamentar aplicável à estrutura do sistema de governação das empresas de seguros e de resseguros, de acordo com o enquadramento regulatório nacional e europeu aplicável, como também reforçar os pilares do sistema de governação já existente.

Em particular, a Norma veio regular, pela primeira vez, a temática da participação interna de irregularidades, passando a prever-se a obrigatoriedade da implementação de mecanismos relativos à operacionalização dos meios de receção, tratamento e arquivo de participações de irregularidades graves relacionadas com a administração, o sistema de governação ou a organização contabilística (suscetíveis de colocar as empresas em situação de deterioração das suas condições financeiras) ou com indícios de infrações a deveres legais.

Deste modo, no regime aplicável à gestão de participações de irregularidades graves passou a prever-se, entre outros, o dever de o órgão de administração das empresas de seguros e de resseguros assegurar a existência de uma política de participação de irregularidades que deve ser devidamente implementada e divulgada no site da empresa de seguros ou de resseguros, e a qual deverá ser objeto de revisões periódicas, no mínimo, anuais.

O conteúdo essencial mínimo da política de participação de irregularidades encontra-se definido na Norma, a qual visa, elementarmente, garantir um núcleo essencial de proteção, estabelecer os processos de tratamento e averiguação adequados, definir as medidas a adotar e assegurar que todas as participações efetuadas são analisadas e dão origem a um relatório fundamentado. A política em referência apresenta ainda preocupações específicas relacionadas com as garantias dos denunciantes, tendo acautelado, a título exemplificativo, que a identidade do autor da participação não é comunicada às pessoas envolvidas na irregularidade participada (salvo se o autor da participação autorizar expressamente a divulgação da sua identidade) e ainda que a situação profissional do autor da participação não é prejudicada em razão da apresentação da participação.

No seguimento da publicação da Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro que transpôs a Diretiva (UE) 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, e tendo em consideração as normas em vigor no setor bancário que são aplicáveis a esta matéria, constata-se que este quadro de medidas no contexto do compliance das empresas de seguros surge como mecanismo de reforço dos valores de transparência, de rigor e de integridade, instituindo exigências fundamentais ao funcionamento de sistemas de governação que permitem o cumprimento dos deveres legais e a redução da exposição ao risco.

Não obstante se constatar o objetivo de assegurar sistemas de governação eficazes em matéria de participação de irregularidades, as exigências regulamentares que deverão ser implementadas nas empresas de seguros poderão revelar-se desafiantes do ponto de vista operacional e da sua execução. A operacionalização destas normas e a criação de estruturas adequadas e de mecanismos e processos eficazes encontram-se intrinsecamente ligadas e dependentes de vários pilares essenciais que estruturam as organizações, dos quais se salientam:

i) os recursos humanos;

ii) as regras de governance; e

iii) as ferramentas de apoio à implementação de processos.

No que concerne aos recursos humanos, é de salutar relevância a existência de equipas especializadas e a formação de todos os colaboradores nestas temáticas, sendo-lhes fornecidas todas as ferramentas necessárias para lidarem com eventuais irregularidades que possam ter de ser participadas.

Relativamente ao segundo ponto, as regras de governance, enquanto dispositivo central de boas práticas do governo das empresas, constituem um pilar e um instrumento incontornável para a autorregulação das empresas e para o seu crescimento sustentável, contribuindo para o reforço dos valores de ética, responsabilidade, integridade e transparência.

Por último, é de salientar a relevância das ferramentas disponíveis nestas matérias, uma vez que os meios e as operações que poderão estar ao dispor das empresas são imprescindíveis para flexibilizar e otimizar a implementação célere e mais eficiente dos procedimentos necessários ao cumprimento dos deveres legais relativos à participação de irregularidades. De facto, o recurso à utilização de plataformas, meios digitais e soluções de inteligência artificial que asseguram a otimização da estrutura procedimental associada aos canais de participação, permitindo a identificação das áreas nas quais poderão existir maior volume de denúncias, poderão constituir instrumentos de apoio muito úteis, facilitando às empresas de seguros a identificação de pontos de melhoria e de evolução.

Assim, se é certo que a implementação dos procedimentos aplicáveis às participações de irregularidades representa um desafio para o setor, fica também a certeza de que este é um caminho de reforço da defesa e da proteção cada vez exigente dos valores éticos, da conduta profissional adequada dos profissionais e dos mecanismos de autorregulação das empresas de seguros.

As regras relativas à participação interna de irregularidades são aplicáveis a partir de 1 de janeiro de 2023.

  • Patrícia Assunção Soares
  • Advogada Associada da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

A participação interna de irregularidades no setor segurador

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião