A TAP e os lucros que caem do céu
Não devemos cair no cinismo de que os prejuízos são culpa da gestão e os bons resultados emanam apenas do comportamento do mercado.
A contestação da TAP ao pedido de indemnização da ex-CEO, Christine Ourmières-Widener, usa uma argumentação que está nos antípodas daquilo que o Governo e a própria companhia têm dito. Um caso agudo de dupla personalidade.
Senão vejamos. Christine Ourmières-Widener foi escolhida e apresentada por Pedro Nuno Santos, antigo ministro das Infraestruturas, como uma gestora competente e experiente, selecionada pela Korn Ferry, uma consultora internacional. Na ata do Conselho de Administração que a nomeia, onde o Estado está representado, destaca-se que “possui uma experiência considerável em companhias aéreas e conselhos de administração, que ajudará a orientar a nossa estratégia e contribuirá para o regresso do Grupo ao crescimento“.
A antiga presidente executiva assumiu o cargo em junho de 2021, exercício que fechou com prejuízos históricos de 1,6 mil milhões, dos quais mil milhões devido ao reconhecimento de perdas no ruinoso negócio da M&E Brasil, que foi para liquidação. No entanto, quer o número de passageiros, quer as receitas já recuperavam a bom ritmo e no final desse ano Pedro Nuno Santos não tinha dúvidas em afirmar ao ECO: “Nós temos uma excelente CEO na TAP”. Relatava até que a comissária europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, tinha ficado “muito contente e bem impressionada” com a presidente executiva da transportada aérea.
O facto de a TAP ter sido forçada a ceder apenas 9 pares de faixas de aterragem na Portela no âmbito das ajudas de Estado, processo de negociação em que a ex-CEO esteve envolvida, mereceu elogios do ministro das Infraestruturas e do colega das Finanças. Assim como os lucros de 65,6 milhões conseguidos em 2022, os primeiros desde 2017, antecipando em três anos o previsto no plano de recuperação, e a redução do endividamento.
Os contribuintes já injetaram 2,89 mil milhões na TAP e vão pôr mais 343 milhões, o que era uma transportadora aérea de bandeira falida é agora uma empresa com lucros inéditos.
A defesa da TAP, a cargo da Uría Menéndez Proença de Carvalho, faz uma terraplanagem de tudo isto. Começa por arrasar o currículo de Christine Ourmières-Widener, referindo que a sua experiência se resume em grande medida aos cargos na Air France ou empresas relacionadas, onde não desempenhou cargos de administração executiva. Os que teve, como CEO da CityJet e da Flybe, terminaram com as empresas quase falidas e vendidas por “quase nada”. O seu estado já não era famoso.
O bom desempenho financeiro, que a TAP anda a promover junto dos investidores que a financiam e dos potenciais candidatos à privatização, afinal nada tem a ver com a gestão. A defesa da companhia aérea atribui-os aos cortes do plano de reestruturação, delineado pela administração anterior a Christine Ourmières-Widener, e a uma melhoria geral do mercado.
“A melhoria dos resultados positivos da TAP, em comparação com o plano de reestruturação, deveu-se não às suas [da ex-CEO] expertises de gestão, mas sim, globalmente, a uma recuperação antecipada e surpreendente (…) da economia mundial e uma consequente recuperação da atividade das companhias aéreas precoce e acelerada”, argumenta a contestação. Pode mesmo ler-se que “todas as companhias aéreas melhoraram no pós-Covid-19, algumas com muito melhores resultados do que a TAP”.
Faz lembrar O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. A TAP Dr. Jekyll contratou uma CEO e novos gestores competentes e experientes, que conseguiram bons resultados, melhores em vários aspetos que a Lufthansa ou a Air France, segundo as apresentações da empresa. Números que mostra orgulhosamente aos investidores.
Transformada em Mr. Hyde, a companhia contratou uma CEO com parca experiência e um currículo “tumultuoso”, que chegou aos lucros apanhando a onda da retoma, sem qualquer mérito da gestão.
A teoria de que os lucros caíram do céu, que tem partidários nos partidos da direita, também tem que se lhe diga. Estarem lá seis administradores executivos e um vasto número de diretores ou ninguém é absolutamente indiferente: o resultado seria exatamente o mesmo. Não é verdade.
Sem os cortes nos custos salariais e a retoma do turismo, a companhia não teria saído do vermelho em 2022. Mas os resultados não teriam sido os mesmos, então e hoje, sem as decisões de gestão que foram tomadas. Decisões sobre as rotas em que apostar, com uma frota limitada pelo plano de reestruturação. Decisões sobre as tarifas dos bilhetes a praticar ou o “seguro” do preço do jetfuel. Decisões sobre a renegociação com os fornecedores, que em agosto de 2022 já tinham permitido poupanças de 137 milhões. Decisões sobre a restruturação da dívida financeira com os credores. Decisões sobre a melhoria do atendimento aos clientes nos call centers.
Não devemos cair no cinismo de que os prejuízos são culpa da gestão e os bons resultados emanam apenas do comportamento do mercado.
A defesa da TAP recorreu a todos os argumentos que encontrou para rebater os da ex-CEO. Não são só 5,9 milhões de euros que estão em causa, uma vitória de Christine Ourmières-Widener seria uma pesada derrota política, sobretudo para Fernando Medina, cujo ministério instruiu a demissão.
Apesar de ser a resposta a um processo judicial, não deixa de vincular a TAP e o Governo, tendo em conta que a companhia é 100% detida pelo Estado. Paradoxalmente, põe em xeque o atual secretário-geral do PS que, pelos vistos, escolheu uma CEO com mau currículo, aceitou pagar-lhe um salário ilegal e manteve-a, de par com as Finanças, com uma relação contratual à margem da lei.
Christine Ourmières Widener é vítima da necessidade de o Governo se proteger politicamente do escândalo criado pela indemnização milionária acordada para a saída de Alexandra Reis, mas também o é dela própria. As suspeitas de crimes de “tráfico de influência, de oferta indevida de vantagem ou mesmo de corrupção” na tentativa de fechar um negócio entre a TAP e uma empresa para a qual o marido tinha acabado de ser recrutado como diretor de vendas são demasiado graves.
Nota: Este texto faz parte da newsletter Semanada, enviada para os subscritores à sexta-feira, assinada por André Veríssimo. Há muito mais para ler. Pode subscrever a Semanada neste link.
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