Ainda o relatório Draghi

  • João Galamba
  • 20 Setembro 2024

Muitas propostas de Draghi pressupõem reequilíbrios geográficos com fortes efeitos redistributivos a nível europeu. Será, portanto, mais um teste à criatividade e capacidade políticas de António Costa

Praticamente todos caminhos apontados no relatório Draghi como essenciais para assegurar que a competitividade europeia tem futuro enfrentam o mesmo tipo de obstáculos à sua concretização: não é fácil à União Europeia (UE) agir unida e de forma coletiva. E a UE tem dificuldades em agir coletivamente porque não é um estado-nação, nem uma federação, nem a Comissão Europeia é um poder executivo no sentido convencional do termo. Nesse sentido, o relatório Draghi, antes de propor políticas, deve ser visto como identificando, ainda que não explicitamente, um conjunto de reformas no modo da própria UE funcionar; reformas, essas, sem as quais dificilmente poderão ser postas em prática as políticas que Draghi considera vitais para o futuro da competitividade europeia.

Numa região monetária ótima, para além de uma moeda única, que já temos, também teríamos uma união bancária, uma união do mercado de capitais e, sobretudo, dívida soberana europeia, porque uma moeda comum precisa de um ativo sem risco nessa moeda, também ele comum. Tirando o euro, nada do restante existe. Aquando da pandemia, fruto da necessidade, foi criado o PRR. Agora, também fruto da necessidade tão bem diagnosticada no relatório Draghi, algo de semelhante terá de ocorrer. Terá de ser, no entanto, algo de mais estrutural e virado para o futuro do que o PRR. E mais eficaz, também.

Uma das alterações significativas face ao passado recente da UE em matéria de competitividade é a do abandono da tese de que ser competitivo está associado à redução e/ou contenção dos custos laborais. Contrariamente a essa tese, muito em voga nos últimos anos, em particular no pós-crise das dívidas soberanas, qualquer reforço da competitividade implica forte investimento público a nível europeu e, portanto, implica um orçamento europeu de maior dimensão ou, em alternativa, endividamento comunitário. Mas não é preciso apenas mais dinheiro, é preciso garantir que seja aplicado da maneira mais eficiente e com maior impacto na competitividade do bloco europeu. E, aqui, haverá seguramente fortes resistências.

Na transição verde, por exemplo, que está no coração da estratégia preconizada por Draghi, é natural que haja um reforço de investimento a sul, o que pode criar sérios problemas políticos na sua execução. Não existe reforço da competitividade energética da UE sem forte investimento em interligações, desejavelmente comunitário, que ponha termo ao isolamento ibérico em relação ao resto da europa, por exemplo. Mas França não deverá ser entusiasta dessa mudança.

Na transição verde, por exemplo, que está no coração da estratégia preconizada por Draghi, é natural que haja um reforço de investimento a sul, o que pode criar sérios problemas políticos na sua execução. Não existe reforço da competitividade energética da UE sem forte investimento em interligações, desejavelmente comunitário, que ponha termo ao isolamento ibérico em relação ao resto da europa, por exemplo. Mas França não deverá ser entusiasta dessa mudança.

Também não haverá grande futuro para o setor industrial eletrointensivo europeu se não se reconhecer a necessidade de alteração significativa da atual geografia industrial do espaço europeu, com as regiões historicamente mais industrializadas em forte desvantagem relativa por manifesta falta de competitividade energética. Contrariar esta desvantagem, insistindo em manter especializações do passado será, também, contrário a qualquer ideia de reforço de competitividade europeia. Isto é particularmente relevante nas ajudas de estado, onde a atual capacidade financeira de certos estados-membros pode funcionar em sentido exatamente oposto ao que seria necessário e eficaz do ponto de vista do reforço da competitividade europeia. Intervir nestas matérias, corrigindo distorções existentes, não será fácil, embora seja necessário.

Muitas propostas de Draghi pressupõem reequilíbrios geográficos com fortes efeitos redistributivos a nível europeu. Aqui, importa ser minimamente realista, mas sem abandonar por completo toda e qualquer ideia de mudança. E isso exige criatividade e capacidade política. Será na negociação entre Estados Membros, ao nível do Conselho Europeu, que os equilíbrios favoráveis a este tipo de mudança serão, ou não, criados. Será, portanto, mais um teste à criatividade e capacidade políticas de António Costa.

  • João Galamba
  • Economista e ex-secretário de Estado de Energia

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Ainda o relatório Draghi

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião