Aos amigos os favores, aos inimigos a Lei

O processo é sempre o mesmo: surge um escândalo; faz-se uma lei; a lei não é aplicada; surge novo escândalo; faz-se nova lei. E assim sucessivamente.

Um dos falhanços mais notórios das mais de quatro décadas que já levamos de democracia está na incapacidade de trazer transparência e estabelecer boas práticas no exercício da política.

Os exemplos sucedem-se com frequência e, a cada um, constatamos que pouco ou nada evoluímos de facto. Continuamos sempre às voltas com os mesmos problemas, as mesmas práticas, os mesmos vícios, como se a democracia fosse uma invenção recente e não houvesse experiência e lições passadas.

Nos últimos dias, o episódio da não aplicação da lei da transparência que regula as relações do Estado com empresas participadas por detentores de cargos públicos voltou a recordar-nos isso mesmo.

Convenhamos que a lei é estúpida por colocar tudo no mesmo saco de forma cega. A empresa do filho ou do cônjuge criada há uns meses para, oportunamente, fazer um fornecimento duvidoso ao Estado é tratada da mesma forma que a empresa que fornece o Estado regularmente há décadas, mesmo antes do filho, mãe ou irmão exercer um cargo político.

Mas foi assim que a lei foi feita há 25 anos pelos políticos a quem devia ser aplicada. E, governo após governo, legislatura após legislatura, ela não foi questionada e as alterações entretanto efectuadas foram sempre no sentido do seu reforço e nunca da sua sensata clarificação.

Ao dizerem, hoje, que a lei não pode ser levada à letra – na inaceitável declaração de Augusto Santos Silva – os políticos estão, mais uma vez, a declarar que são uma casta diferente: eles, que já fazem as leis que regulam a sua própria actividade, dão-se ainda por cima o direito de escolher as regras em vigor que devem ser aplicadas e as que devem ser ignoradas.

Nada de novo. Maquiavel já o tinha dito: “Aos amigos os favores, aos inimigos a Lei”.

Qualquer cidadão consegue elencar uma série de regras igualmente estúpidas que o Estado o obriga a cumprir e das quais gostava de estar desobrigado, de imposições fiscais a regras do código da Estrada, passando por um conjunto de obrigações burocráticas. Mas destas ninguém se livra. Destas ninguém pode dizer, em sua defesa, que é “um absurdo uma interpretação literal da lei”, seguindo a sua vida em feliz e impune ilegalidade.

Neste caso, acontece que nos mentiram algures. Ou mentiram quando escreveram e aprovaram a lei, fingindo cinicamente que queriam, de facto, aplicar regras apertadas; ou mentem agora, perante a evidência de violação da lei, argumentando que não era aquela a sua intenção.

É mais uma excepção que o Estado, os legisladores ou detentores de cargos políticos se auto-atribuem, a juntar a tantas outras que nos fazem suspeitar que o Estado de direito, quando nasce, não é para todos.

O processo é sempre o mesmo: surge um escândalo; faz-se uma lei; a lei não é aplicada; surge novo escândalo; faz-se nova lei. E assim sucessivamente.

É assim com a transparência e os conflitos de interesses, com o nepotismo, com a contratação pública, com as regras e abonos parlamentares, com o financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais.

Sobre este último, que estará na origem de alguns negócios duvidosos do Estado, continuamos a achar insuspeito que partidos falidos encontrem sempre uma fartura de meios para campanhas eleitorais ricas que as subvenções públicas não chegam para pagar.

E não estranhamos que as entidades criadas para controlar esses gastos – mais uma lei que criou uma entidade para entreter a plateia – sejam sempre colocadas pelos partidos com a corda na garganta, sem meios para actuar e com os poucos processos instaurados a prescrever nas gavetas do Tribunal Constitucional.

Aqui, como em qualquer outra área da sociedade, a minoria desonesta contamina a reputação da maioria honesta. As más práticas tornam-se o padrão, porque rapidamente se conclui que cumprir as regras constitui uma desvantagem competitiva – o futebol, por exemplo, é um bom espelho desse fenómeno.

Continuamos a brincar perigosamente com o fogo.

A percepção pública da corrupção é cada vez maior e é, agora, o segundo assunto que mais preocupa os portugueses, a seguir à saúde.

E 42% consideram que nenhum partido dá uma melhor resposta para lutar contra a corrupção.

É fácil fazer discursos preocupados com o populismo que pode medrar alimentando-se de cruzadas moralizadoras e justicialistas.

Mas está a ser muito difícil agir preventivamente, corrigindo as práticas inaceitáveis que minam a qualidade da democracia, desprezam o interesse público e esbanjam dinheiro dos contribuintes.

Não será difícil adivinhar que quando o circo começar a arder os primeiros a rasgar as vestes contra as derivas populistas são os malabaristas políticos que tudo fingem mudar para que tudo continue na mesma.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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