O Estado e as bestas de carga fiscal

Há cinco décadas o Estado demoliu o mercado municipal, vendeu o terreno e autorizou o prédio Coutinho. Hoje, o Estado compra o prédio, obriga proprietários a sair e quer construir ali o mercado.

O que se está a passar com o despejo do prédio Coutinho, em Viana do Castelo, é apenas o último exemplo público de uma prática que se acentua e atinge níveis insuportáveis: um Estado prepotente que tudo exige a todos mas que pouco ou nada cumpre.

Não gosto daquele nem de tantos outros mamarrachos que se construíram no país durante décadas. Não acho, por isso, má ideia que, sempre que haja uma boa oportunidade, esses erros sejam corrigidos.

O prédio em Viana do Castelo pode bem ser um desses casos. E tivessem todos os proprietários concordado com o Estado sobre a sua saída do prédio não ocorreria a polémica que se arrasta há décadas. É isso que acontece regularmente, aliás, com processos de expropriações que se iniciam e concluem com acordos entre as partes.

Mas não foi isso que aconteceu em Viana do Castelo. Alguns proprietários, que compraram um imóvel de construção legal e devidamente licenciada pelo Estado, recusam-se a aceitar as condições definidas para desocupar o prédio a fim de destrui-lo por razões estéticas.

E o Estado, em vez de negociar até ter um acordo com o último proprietário, o que faz? Corta o fornecimento de água e luz e começa com a demolição nas zonas contíguas aos apartamentos ainda habitados.

Esta prepotência surge, ironicamente, poucos meses depois do Estado ter consagrado na lei o conceito de “bullying imobiliário”, que diz assim:

“É proibido o assédio no arrendamento ou no subarrendamento, entendendo-se como tal qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o represente ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objetivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado.”

O Estado que protege – e bem – inquilinos de abusos de proprietários é o mesmo que agora, perante donos legítimos das suas casas, adopta atitudes intoleráveis só vistas em regimes musculados.

É que se alguém errou em todo este caso desde o início foi o próprio Estado, ao autorizar e licenciar um prédio que nunca deveria ter sido feito ali.

O Estado vem agora dizer que se arrepende dessa sua decisão. Pois muito bem, que se arrependa e tente corrigir. Mas, repare-se, o erro assumido é das entidades públicas que autorizaram o prédio mas os custos e o transtorno são para quem? Para os proprietários e para os contribuintes que pagam todos estes desmandos.

Há cinco décadas o Estado demoliu o mercado municipal, vendeu o terreno a um privado e autorizou a construção do prédio Coutinho.

Hoje, o Estado compra o prédio Coutinho, paga indemnizações a alguns e obriga outros proprietários a sair à força. Para quê? Para ali voltar a instalar o mercado municipal.

Isto é anedótico e revelador de uma certa forma de gestão da coisa pública. E essa gestão obscena persiste e vai continuar porque se está no reino da mais absoluta impunidade. Não há, nunca há, entidades públicas responsabilizadas. Nunca há, nunca há, processos por gestão danosa do Estado e do dinheiro dos contribuintes. O Estado é uma entidade ininputável e, como se vê, comporta-se confortavelmente como tal.

Esta é, infelizmente, uma tendência que cresce há décadas. O Estado que exige o que nunca cumpre, que recusa qualquer responsabilização e que actua, nalguns casos, como um verdadeiro gangster.

De repente o Estado decidiu preocupar-se com os mamarrachos espalhados pelo país? Muito bem, porque não se começa por demolir os que foram construídos e são ocupados por si, onde não há problemas de despejos, indemnizações e proprietários que teimam em ficar na sua casa?

Na minha terra, em Viseu, há um, o “Prédio da Caixa” (de Previdência). Já se falou na sua demolição total ou parcial. Mas nunca avançou. É que ali funcionam serviços públicos de Segurança Social e Saúde e é complicado fazer mudanças de serviços, não é?

Para o Estado é sempre mais fácil exigir do que organizar os serviços para cumprir o que impõe aos privados.

Tal como se encontra toda a legitimidade para fazer rusgas fiscais à saída da auto-estrada para cobrar dívidas enquanto, por exemplo, os familiares das vítimas nos Comandos mortos em treino esperam há três anos indemnizações do Estado.

Pagamentos? Experimente atrasar-se cinco minutos no pagamento de um imposto e terá multa na certa. Mas o Estado exemplar a exigir não olha para o que faz e vai acumulando dívidas a fornecedores.

Moradas oficiais? Aos pais é exigida a morada fiscal na matrícula dos filhos na escola pública. Mas, como sabemos, os deputados que fazem estas leis para o povo podem escolher a morada que bem entendem para receberem o subsídio.

Registos contabilísticos? O fisco admite que as novas exigências aplicadas às empresas lhe dão “uma dose de informação brutal” que será depois utilizada para verificar a conformidade com a lei. É pena que os partidos, pilares da democracia e que deveriam dar o exemplo, escolham para si a impunidade, escolhendo para o Tribunal Constitucional juízes que deixam prescrever as irregularidades nas suas contas.

Serviços públicos desorganizados, mal equipados e desenhados pela sua conveniência e não pela dos utentes? Não é assim. A culpa é dos utentes que têm o desplante de a eles recorrerem para cumprir obrigações burocráticas que o Estado lhes impõe.

O estacionamento em cima do passeio é um acto selvagem, devidamente punido por lei? Nem sempre. É legal quando o Estado, para aumentar a receita com parquímetros, decide que em cima do passeio é que os carros estão bem. Cadeiras de rodas e carrinhos de bebé? Mas quem é que esta gente pensa que é para exigir condições para andar na rua?

Imóveis devolutos? Vão pagar mais impostos porque os proprietários não devem manter casas fechadas quando há tanta falta delas no mercado. É óbvio que nada disto de aplica ao Estado, que nem sabe ao certo quantos imóveis tem e, dos quatro mil que estão vazios, a maioria não está para arrendar.

Podia continuar a lista, com exemplos mais graves e importantes e outros apenas mais caricatos – por exemplo: o que passa na cabeça das “altas individualidades” que andam pelo país de batedores de polícia, sirenes ligadas e a violar todas as regras de trânsito? Será que pensam que só eles é que trabalham e têm horários a cumprir? Que toda a plebe deve prestar vassalagem e parar no semáforo verde para que passem que têm pressa? Quando se acabam com estes tiques parolos e medievais? Se o país é dos mais seguros do mundo o que temem em estar no trânsito e cumprir as regras como toda a gente?

A questão é que esta dualidade de critérios e de práticas está a aumentar. O fosso entre o Estado exigente com todos e cada vez mais relapso consigo é cada vez maior.
Isto quando a carga fiscal vai aumentando, tirando uma fatia cada vez maior da riqueza produzida pela economia para sustentar os seus serviços, degradados a olhos vistos, e a sua prepotência, algumas vezes sem conta, peso e medida.

A tendência não é de hoje, mas torna-se cada vez mais insuportável.
Há duas ou três décadas o Estado não era melhor. Mas nessa altura pagar impostos e cumprir leis eram desportos voluntários no país. Como a bandalheira era geral não havia desequilíbrios, ninguém ligava nem reparava nas diferenças. Havia muita impunidade mas era uma impunidade democrática, igual para todos.

Entretanto, muita coisa mudou e até por boas razões. O Estado foi encontrando formas de ser mais exigente com os cidadãos e empresa. Foi apertando a malha. Mas só se lembrou dessa parte e esqueceu-se de si. O abismo está à vista e torna-se cada vez mais intolerável.

Algures na Constituição devia haver esta frase ou algo parecido: “O Estado só exigirá aos cidadãos aquilo que ele próprio cumprir”.

No dia em que isso acontecer e for levado à letra muitas coisas boas acontecerão no país.

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