As luvas de pelica do fisco

A ação do fisco encontra-se no âmbito das leis que vão sendo aprovadas do Parlamento e promulgadas pelas sucessivas presidências da República. A minha recomendação é que haja bom senso e muito juízo.

Há cerca de um mês, enquanto o país estava a banhos, o Presidente da República promulgou a lei que ficou conhecida como a lei do “Big Brother” fiscal. Recorde-se o que estava em causa: um decreto-lei apresentado pelo Governo no final de 2018 tornava obrigatório o envio anual à Autoridade Tributária, por parte das empresas, do chamado ficheiro SAF-T de contabilidade.

O ficheiro SAF-T tem uma versão simplificada, que é obrigatoriamente enviada ao fisco com frequência mensal, contendo dados referentes à facturação das empresas, e tem também uma outra mais detalhada que apenas é solicitada pelos fiscais em caso de inspecção tributária. O Governo queria obrigar as empresas a enviar ao fisco a versão detalhada do ficheiro de contabilidade, para além da simplificada que já é enviada. Em breve irá poder fazê-lo.

Sobre isto, a Associação Nacional dos Contabilistas lançou em Abril uma petição, na qual afirmava que “o acesso do Estado a estas bases de dados viola seguramente liberdades, direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos em matéria de privacidade, do RGPD, do sigilo bancário, de muitos outros interesses relevantes, e até da propriedade privada das pessoas e das empresas”. A mesma petição referia também que a partilha de dados reservados tais como “saldos bancários, vendas, compras, gastos, recebimentos, pagamentos, movimentos bancários, património e dívidas das empresas, dos empresários em nome individual, de bancos e seguradoras” configurava uma devassa do Estado sobre os cidadãos.

Após a contestação, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais justificou o decreto-lei com a necessidade de facilitar o auto-preenchimento da Informação Empresarial Simplificada (que anualmente as empresas são obrigadas a submeter às finanças). O secretário de Estado fez ainda o choradinho aos “muitos milhões de euros gastos com a adaptação dos sistemas [informáticos]”, rogando, por fim, aos deputados que não chumbassem a medida. No final, vingou uma versão diluída da ideia original do Governo que expurgará, possivelmente com recurso a encriptação informática, alguns campos considerados mais sensíveis. O Governo tratará agora de decidir que campos são esses e de regulamentar a lei, a fim da sua implementação em 2020.

A exemplo do que tenho feito noutros artigos, e atendendo a que a situação se repete sistematicamente, quero aqui reiterar a minha crítica à mania que existe em Portugal de se aprovarem leis sem antes se tratar da sua regulamentação. Trata-se, na minha opinião, da receita certa para se fazerem leis irreflectidas, mal feitas ou mal implementadas. Leis feitas a martelo, frequentemente puros devaneios parlamentares, sem adesão prática à realidade que pretendem legislar. Ninguém poderá depois ficar admirado ao ouvir o senhor primeiro-ministro, eminente jurista, quando este afirma (ipsis verbis) que “não há nenhum jurista que ignore aquilo que é uma regra básica da interpretação e que está no artigo 9º do Código Civil”. E diz assim (vou citar de cor): a interpretação não se pode cingir à letra da lei.” Ora, como sabemos, leis imprecisas são ginja para este Governo. O Código Civil dá jeito quando dá.

Mas, no caso em apreço, o Governo e a Autoridade Tributária têm plena noção do que estão a fazer. Estão a abusar do poder estatal. Indiscutivelmente, o fisco precisa de meios para tornar efectiva a sua acção e para combater, de forma legítima e eficaz, a evasão fiscal. Todavia, isso não implica que tenha de ter acesso a toda e qualquer informação. Que o Estado tenha acesso reforçado à informação sempre que há uma suspeita de ilícito, devidamente consubstanciada numa inspecção tributária, parece-me muito bem. Que o Estado receba informação sobre os fluxos transacionais dos agentes económicos, aqueles que estão sujeitos a obrigações fiscais, também me parece adequado e razoável. Porém, mesmo num mundo que caminha para a tributação instantânea (que me parece a evolução natural em face da tecnologia existente), há um limite para o razoável.

Nestas alturas, e perante estes argumentos, haverá sempre quem acene com o papão do “quem não deve, não teme”. Mas, perdoar-me-ão os leitores pela crueza de linguagem, esse é o argumento mais idiota à face da Terra para justificar aquilo que não tem justificação razoável. Uma coisa é alguém estar de consciência tranquila, por nada dever, e voluntariamente colocar-se à prova de outro alguém. Outra coisa é aceitar-se que alguém, imputando alguma coisa a outro alguém, e sem nada que o assista, possa exigir que esse outro alguém se detenha à prova.

Na verdade, foi sob o lema do “quem não deve, não teme” que regimes fascistas e comunistas enviaram cidadãos inocentes para campos de concentração e para “gulags”. Deixemo-nos, portanto, disso.

No caso das leis fiscais, a razão para justificar a devassa estatal não pode ser outra senão uma acusação de incumprimento tributário, salvaguardando regras processuais decentes, em cujo caso o acesso à informação reforçada já estava previsto na lei anterior.

A caça às bruxas que se vive em matérias fiscais justifica um olho céptico sempre que o fisco solicita mais e novos poderes. Não está em causa o combate à evasão, nem uma maior tolerância à elisão – ainda esta semana foi publicado um estudo muito interessante de uma universidade dinamarquesa em parceria com o FMI sobre a verdadeira natureza de muita arbitragem fiscal que aparece disfarçada de investimento directo estrangeiro –, mas com a tecnologia que hoje existe há razões para temer um Big Brother fiscal (e não só).

A Autoridade Tributária, que merece o respeito dos cidadãos pela função que exerce, sem a qual serviços públicos que muitos apreciam não existiriam, não é nem deve ser uma autoridade policial. Contudo, à medida que lhe são concedidos mais e novos poderes, esmagando progressivamente a posição dos cidadãos, é no sentido de uma autoridade policial que ela caminhará.

Os exemplos estão aí para o evidenciar. Tivemos a operação “acção sobre rodas” que escandalizou o país. Foi também citada na comunicação social a existência no fisco de equipas secretas de vigilância, “com seguimentos e recolha de elementos fotográficos”. Entretanto, foi anunciado que o fisco tem planos para fazer “inspecções amigáveis” a dezenas de milhares de empresas que abriram actividade nos últimos meses. Agora, soube-se esta semana, a Autoridade Tributária estará a executar dívidas aos muitos advogados que têm quotas em atraso junto da Ordem dos Advogados.

Tudo isto, podendo ser criticado pela eventual desproporção de meios, e até pela utilização do fisco para fins discutíveis, encontra-se no âmbito das leis que vão sendo aprovadas do Parlamento e promulgadas pelas sucessivas presidências da República. A minha recomendação é que haja bom senso e muito juízo. Um dia, poderemos acordar e não gostarmos da sociedade a que teremos chegado.

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