
As marcas numa encruzilhada entre preço e valor
Numa fase em que o mercado se comprime e se torna excessivamente pragmático e programático, as marcas têm de romper barreiras e apostar, em estratégias de renovação, de inovação.
É célebre a frase de Warren Buffet que diz que “o preço é o que pagamos e valor é o que recebemos”. A frase não perdeu atualidade, mas como referia um texto recente da KPMG, o consumidor está, atualmente, a enfrentar uma inflação sem precedentes que questiona os conceitos de valor e preço. E isso, no caso do grande consumo, obriga o retalho alimentar, mas também a cadeia de aprovisionamento que se desdobra na sua retaguarda, a um complexo desafio de reorganizar a sua oferta para que os inevitáveis aumentos de preços que estamos a assistir e a quebra de poder de compra que as famílias estão a sentir, não desestimulem a procura.
Não espanta, pois, que o aprovisionamento e os produtos nos lineares sejam especialmente pensados para um shopper que dá prioridade ao essencial. E isso leva, se calhar de forma algo exagerada, a dar espaço e atenção comunicacional aos chamados produtos low cost e às marcas próprias das insígnias.
A inflação em Portugal anda a roçar os dois dígitos, um patamar que não víamos desde meados da década de oitenta, então num contexto histórico, económico e monetário muito diferente do atual. Ainda vivíamos no tempo do escudo e dos mecanismos de desvalorização cambial e esses momentos de maior inflação eram, muitas vezes, combatidos com a quebra da moeda nacional face ao dólar. O PIB era mais de dez vezes inferior ao atual e ainda não tínhamos aderido à então CEE, hoje União Europeia e, menos ainda, à Zona Euro.
Por isso, é tão complexo analisar a evolução dos preços, do poder de compra e do comportamento do consumidor num cenário inflacionista como o atual, porque, claramente, nos faltam dados históricos que permitam desenhar modelos previsionais.
As marcas e os distribuidores estão seguramente nesta altura a tentar analisar a elasticidade preço-procura dos seus produtos, mas essa falta de projeções e de referências, a falta de uma bússola, torna mais difícil redefinir os preços e adiciona uma camada grossa de incerteza.
A situação assemelha-se a uma tempestade perfeita onde observamos não só o aumento dos custos de produção, mas também os custos de transporte, energia, salariais e financeiros das empresas, sem sequer falar nas tensões na cadeia de aprovisionamento derivadas da pandemia.
As marcas e os distribuidores estão seguramente nesta altura a tentar analisar a elasticidade preço-procura dos seus produtos, mas essa falta de projeções e de referências, a falta de uma bússola, torna mais difícil redefinir os preços e adiciona uma camada grossa de incerteza.
E conduz-nos à mais básica das perguntas: como repassar todos estes agravamentos para o preço sem correr o risco de perder procura?
Os fabricantes já vinham encurtando margens há anos e mesmo muito antes da pandemia. Produtores e distribuidores terão dificuldade em continuar a abdicar de transferir os aumentos de custos, como fizeram em 2021, para empurrar a reativação do consumo. Não se podendo esquecer que os produtos mais impactados pela inflação são precisamente aqueles bens de primeira necessidade onde a matéria-prima tem um peso mais relevante no respetivo custo final.
As famílias, com os seus orçamentos disponíveis ainda fragilizados por dois anos da pandemia, vendo que os seus salários não acompanham os aumentos de preços e atacados por outros aumentos de despesa, como os que estão a chegar pela via do agravamento das taxas de juro, têm menos dinheiro na carteira para pagar mesmo pelos produtos mais básicos e tendem a mudar os seus hábitos de consumo.
O consumidor torna-se mais sensível ao preço e tanto as marcas como os distribuidores são empurrados para medidas que permitam adaptar-se a esta mudança. Quer as marcas de fabricantes, quer as marcas próprias, precisam de definir novas prioridades para enfrentar esta tempestade.
Os modelos de preços devem ser preparados cuidadosamente. Cada referência e cada categoria têm especificidades próprias. Numas será possível competir, noutras as marcas serão obrigadas a ajustar-se. Os sortidos, em muitos lineares, estão a ser reduzidos e, como não há espaço para tudo, as marcas são obrigadas a optar onde podem ou onde preferem competir.
Porque na verdade, quando o consumidor tem dificuldade em pagar mais pela mesma coisa, tende a desviar a compra para as marcas mais baratas ou para produtos alternativos, em muitos casos das marcas próprias, mesmo quando estas também sobem os seus preços. Até porque, em diversos casos, dados os preços de mercado e as muito diferentes margens praticadas, mesmo aumentos percentuais mais elevados das marcas das insígnias, ainda assim, levam a que – em valor absoluto – o diferencial de preços seja aumentado.
Não é, pois, complicado compreender os dificilíssimos obstáculos e desafios que as marcas de fabricante estão e irão enfrentar: absorver o galopante aumento de custos sem os repercutir integralmente nos preços de cedência, não perder espaço numa prateleira cada vez mais curta e cada vez mais ocupada pelos produtos das marcas das insígnias, conseguir competir com produtos com preços de venda ao público muito mais baixos em resultado de margens altamente discriminatórias. E quando o consumidor possui um poder de compra muito encurtado, as marcas de fabricante terão de enfrentar, ainda por cima, um aumento do diferencial de preços em inúmeras categorias, por força da concorrência acesa entre marcas próprias das diferentes insígnias.
É muito fácil identificar os problemas e dificuldades. Muito, muito difícil será encontrar pistas de solução. Fácil é também compreender que este é um momento particularmente adverso para as marcas e para os seus produtos, para a sua presença nos lineares e para a sua rentabilidade.
Mas é nos mares mais revoltos que se descobrem os melhores timoneiros.
Parece claro que existem no nosso mercado dois modelos de retalho marcadamente distintos. Um apostando num sortido curto, numa presença quase exclusiva de marca própria e numa relação muito simplificada e programática com o consumidor.
Um outro, de sortido mais alargado, apostando mais na inovação e na disponibilização de novos produtos, oferecendo uma mais ampla liberdade de escolha, permitindo uma melhor experiência de compra.
E, independentemente, do sucesso alcançado pelo primeiro modelo nos últimos três anos, parece claro que o segundo modelo tem de se impor pela sua diferença e pelo reforço das suas características e vantagens.
Nesta altura – mais do que nunca – é fundamental não abdicar de ser marca, não nos convertermos num produto que o único argumento que apresenta é o seu preço mais competitivo, que o único local onde se cruza connosco é a prateleira ou o folheto do supermercado. É preciso insistir no labor contínuo ao nível da comunicação, da responsabilidade, da qualidade, da sustentabilidade ou da inovação.
Por outro lado, o modelo de negócio do retalho mais convencional, ao contrário do implementado pelos discounters, vê a sua rentabilidade altamente ameaçada quando não encontra os necessários equilíbrios entre as vendas das marcas de fabricantes (onde extrai margens muito mais amplas e simpáticas) e as vendas das suas marcas próprias (com margens muito mais estreitas e especialmente pressionadas neste período de forte incremento de custos), Assim, a continuar este período de progressivo crescimento das vendas das marcas dos distribuidores e o consequente ganho de quota relativa face às vendas das marcas de fabricante, não tardarão a verificar que a sua rentabilidade irá ser rapidamente colocada em causa.
Nesta altura – mais do que nunca – é fundamental não abdicar de ser marca, não nos convertermos num produto que o único argumento que apresenta é o seu preço mais competitivo, que o único local onde se cruza connosco é a prateleira ou o folheto do supermercado. É preciso insistir no labor contínuo ao nível da comunicação, da responsabilidade, da qualidade, da sustentabilidade ou da inovação.
As marcas precisam ter uma mentalidade disruptiva para continuarem a ser competitivas atualmente. Por isso, numa fase em que o mercado se comprime e se torna excessivamente pragmático e programático, as marcas têm de romper barreiras e apostar, consistentemente, em estratégias de renovação, de inovação e, obviamente de modo menos frequente, de disrupção. O digital oferece novas plataformas de acesso e pontos de contacto com o consumidor. Modelos de negócios alternativos expandem a capacidade de conversão de clientes e permitem criar rotas para o mercado.
E iremos, certamente, observar nos próximos meses as melhores marcas a, uma vez mais, colocarem em prática estratégias que combatam este ‘monopólio’ das marcas próprias, que interrompam o seu quase monólogo, que convençam os seus públicos que mesmo com preços eventualmente mais altos (tantas vezes fruto de margens comerciais – aplicadas pelos retalhistas – incomparavelmente mais elevadas e fortemente discriminatórias) são as opções mais adequadas ao consumidor, seja por razões funcionais e de qualidade, seja por razões emocionais e reputacionais, seja por que são as que melhor se identificam e acompanham cada um de nós.
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