Editorial

Caso Centeno. Mentir é uma falta grave?

Mário Centeno afirmou ao FT que foi convidado por Marcelo e Costa para liderar o Governo. Marcelo desmentiu e o governador assumiu a mentira. A mentira é uma falha grave?

Já se desconfiava, as mais recentes notícias anunciavam-no, mas agora torna-se evidente: A Mário Centeno não chega ser governador do Banco de Portugal (BdP), a sua ambição ultrapassa a instituição, e isso seria aceitável se não estivesse a usá-la em benefício próprio, do seu futuro profissional e político. A decisão inusitada de publicar uma análise económica em nome próprio cria um precedente que fragiliza, em primeiro lugar, o próprio Banco de Portugal e reforça o que já era uma perceção de dependência face ao Governo“. Editorial do ECO, 5 de setembro 2023.

Mário Centeno tem uma dimensão académica inquestionável e uma competência profissional muitíssimo acima da média, só proporcional à sua gigante ambição e ego pessoais. Não é um problema, desde que isso não fragilize o Banco de Portugal, uma instituição independente que integra o eurosistema de bancos centrais. A linha foi, definitivamente ultrapassada, não há retorno, há parcialidade e uma “falha grave” de Centeno, e só num país sem respeito pelas instituições é que será possível ultrapassar isto sem consequências.

Até ao final do dia deste domingo, a situação já tinha posto em causa as condições de imparcialidade do governador do Banco de Portugal, a partir do momento em que fica claro que Centeno abriu a porta a ser primeiro-ministro de um governo socialista — governo de onde tinha saído diretamente para o próprio banco central. O código de conduta do BCE é claro sobre as matérias de conflito de interesse, e a garantia da necessária imparcialidade no exercício da função. No artigo 11º (de 21), é aliás explicitado que um conflito de interesses no desempenho da função — neste caso de governador — surge quando interesses particulares podem influenciar “ou podem criar a perceção de que influenciam” a imparcialidade e objetividade no desempenho das funções. Alguém tem dúvida se o que se passou nos últimos dias criam a perceção geral e pública, junto dos agentes económicos, de que Centeno não é independente do Governo socialista?

Num país que está habituado aos ‘jeitinhos’ — Marcelo, com a forma como geriu a demissão do Governo, voltou a contribuir para esta forma de exercício de poder –, Centeno poderia escapar, já tinha escapado quando passou diretamente das Finanças para o Banco de Portugal. Mas com a notícia do ECO sobre a reunião do Comité de Ética e as perguntas ao BCE, o tema passou a ser internacional. Centeno recusou-se a prestar contas aos jornalistas portugueses, chegou ao Financial Times e o governador não resistiu a uma declaração para conter danos e evitar a mão pesada do comité de ética do banco central do euro.

Há uma ironia trágica nisto. Costa pensou em si próprio e na sua salvação quando decidiu anunciar ao país que tinha feito um convite a Mário Centeno para lhe suceder, o governador pensou em si quando decide dar uma declaração ao FT em que envolve o Presidente da República no convite, e acaba por admitir, implicitamente, que estaria disponível para ser primeiro-ministro do governo socialista. O desmentido formal do Presidente da República — na madrugada desta segunda-feira — é tão inusitada como grave, e já está na imprensa internacional. Depois das notícias sobre a demissão do primeiro-ministro por causa de investigações judiciais em casos de corrupção, só faltava mesmo isto para prejudicar a imagem do país.

Este desmentido, de resto, leva este problema a outro patamar:

Se Centeno mentiu, há uma falta grave, certo? O que diz o Estatuto do Sistema Europeu dos Bancos Centrais e do BCE, no seu artigo 12º,4?

  • Um governador só pode ser demitido das suas funções se deixar de preencher os requisitos necessários ao exercício das mesmas ou se tiver cometido falta grave“.

Os processos de eventual destituição de um governador de uma entidade independente do poder político são exigentes, como deve ser. Precisamente para proteger a separação de poderes e a autoridade do BCE e respetivos bancos centrais na sua missão, a de controlo da evolução dos preços. E não é por estar em causa Centeno, no meio de uma crise sem precedentes como esta, que o processo deve ser aligeirado.

Uma coisa é certa: A credibilidade do Banco de Portugal está no chão, e Centeno só poderia contribuir para a sua recuperação com um pedido de demissão, coisa que não vai seguramente suceder. A Comissão de Ética do Banco de Portugal — comissão que é indicada pelo próprio conselho de administração do banco central… — deveria fazer, no mínimo, o que é essencial, enviar o processo para decisão do próprio BCE, à distância, e sem interferências políticas.

PS: Já depois de terminar este Login, Mário Centeno publicou um comunicado em que assume que mentiu ao Financial Times. “É inequívoco que o Senhor Presidente da República não me convidou para chefiar o Governo”. Se isto não é uma falha grave, o que será?

Alguém ainda se lembra do que sucedeu com o que aconteceu com o convite do ministro das Finanças Mário Centeno a António Domingues para a presidência da CGD? A história pode ser lida aqui, uma notícia em primeira mão do ECO, e percebe-se um certo padrão…

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