Editorial

Costa arrisca deixar o país em pior estado do que Sócrates

António Costa contou ao país "a sua verdade", mas isso significou um ataque às investigações judiciais, em direto a partir da Residência Oficial do primeiro-ministro.

O país vive um momento absolutamente insólito, bizarro, à falta de melhor adjetivo, extraordinário, mas também perigoso, um primeiro-ministro a usar as suas funções e as instituições do Estado, o Governo e o Banco de Portugal, para tentar proteger o PS e para se defender de um processo em que está a ser investigado, contra a Justiça. Neste contexto, já não há uma boa forma de sair desta crise, o discurso de António Costa em São Bento (com a mulher na fila da frente) revela não só uma enorme desorientação política e pessoal quando se pedia dignidade de Estado, como um enorme encenação, trágica, que arriscar deixar o país em pior estado, institucional, ético e moral, do que aquele que ficou depois de anos de governação de Sócrates. É obra.

O subdiretor do ECO, André Veríssimo, escreveu aqui uma frase que é das mais certeiras que se leram desde terça-feira de manhã: “Não bastam contas certas, é necessária a ética certa“. E essa, como se sabe já hoje, quaisquer que sejam os desenvolvimentos e conclusões da justiça, revela um enormíssimo défice público e político, daqueles que não pode ser corrigido com a maior carga fiscal histórica sobre os portugueses. Alguém há de escrever sobre a história desta semana, da demissão com alegada dignidade a uma comunicação ao país de um primeiro-ministro que ainda o é do ponto de vista formal, mas já não tem um mínimo de condições para exercer as funções, nem sequer em gestão corrente. António Costa já não regressará ao Parlamento para os debates quinzenais (vai representar o país nos conselhos europeus?), mas, então, como é que tem condições para se manter em funções com o exemplo que acabou de dar nesta inusitada intervenção de sábado à noite?

A comunicação ao país deste sábado serviu para duas defesas e um ataque: Deixou cair o chefe de gabinete Vítor Escária, cancelou o “melhor amigo” Lacerda Machado e, debaixo de uma cortina de fumo e de uma lição sobre investimento estrangeiro, criou “a sua verdade” sobre os projetos de investimento que estão sob investigação judicial, num óbvio contra-ataque e condicionamento ao Ministério Público. O caso João Galamba, esse, já está no domínio do surreal, e Costa vai tentar comprometer Marcelo na sua inevitável demissão.

António Costa disse o óbvio, o investimento estrangeiro é fundamental para Portugal, mas isso nunca esteve em causa. O que está em causa é outra coisa, os processos usados, os métodos, o facilitismo, a pressão, veremos se a corrupção e o tráfico de influência. Mas para o ainda primeiro-ministro, a lei deve ajustar-se ao interesse público definido, a cada momento e ‘ad-hoc’, pelo primeiro-ministro, ministros e amigos. A legalidade e o Estado de Direito não podem depender dessa decisão, por mais agressivo seja um Governo na atração de investimento estrangeiro. Portugal nunca se deu bem com medidas, mesmo bondosas, para agilizar investimento. Regra geral, acaba a “agilizar” outras coisas.

Costa admitiu que a sua carreira política terminou. Terá caído em si, terá percebido finalmente a gravidade do que está em causa nestas investigações, e as suas responsabilidades políticas, mas os sinais que dá são os de que vai valer tudo daqui até ao final do exercício de funções, até à tomada de posse do novo Governo. Não há economia que resista a isto, à degradação institucional, à ‘mexicanização’ do país de que, afinal, não estamos protegidos.

Marcelo estará com uma enorme dúvida: Ao fim de pouco mais de 48 horas de anunciar ao país um calendário político e eleitoral, já estará arrependido, já terá concluído que deveria ter exonerado Costa de funções com efeitos imediatos. Mas mudar a decisão agora é politicamente muito difícil e por isso vai ter de assumir um papel que nunca quis. Não bastará ser árbitro, deixou de ser possível, vai ter de ser jogador, ao ataque, para proteger as instituições e o Estado de Direito. É que Sócrates, quando foi detido, já não era primeiro-ministro…

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