Creches: não se deixam crianças para trás

  • Inês Palma Ramalho
  • 13 Outubro 2022

Gratuitidade da creche é uma política de mobilidade social, uma medida educativa e pedagógica importantíssima, um vetor de promoção de natalidade e de justiça e equidade de género.

Quando foi publicada a Lei n.º 2/2022, logo no início do ano, foram muitas as famílias que celebraram a concretização de uma promessa eleitoral. Finalmente, a creche – esse primeiro momento coletivo pedagógico na vida de um bebé – passava a ser gratuita para todas as crianças.

A medida é bem intencionada, mas insuficiente. Prevê uma aplicação faseada, acolhendo primeiro as crianças nascidas após 1 de setembro de 2021 e que ingressem no 1.º ano de creche e, só em 2023 e em 2024, sucessivamente, as crianças a inscrever nos 2.º e 3.º anos de creche.

Ou seja, crianças nascidas antes de setembro de 2021 nunca beneficiarão desta medida e só em 2024 é que poderemos confirmar se Portugal garante a creche gratuita a todas as suas crianças.

Esta limitação de beneficiários já é infeliz, mas há que começar por algum lado e até se pode perceber o imenso planeamento ou logística que uma medida desta dimensão implica. Aquilo que já não se percebe foi a limitação da regra da gratuitidade ao sistema de cooperação e às amas da Segurança Social, excluindo-se, com isso, todas as creches autorizadas a operar em Portugal fora do setor social ou cooperativo e, mais importante, todas as crianças que as frequentem.

Ora, se Portugal tivesse de um sistema público, social ou cooperativo de creches capaz de cobrir todas as necessidades das famílias, o problema não se colocava, mas estamos tão longe disso, que a opção política é, para além de visivelmente ideológica, totalmente inexplicável.

Façamos umas contas rápidas. De acordo com os dados do INE, Pordata e Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (que centraliza o “teste do pezinho” que todos os bebés devem fazer até ao 6.º dia de vida), entre 2019 e 2021 nasceram pouco mais de 250.000 crianças em Portugal. Ou seja, a opção governamental de recorrer apenas a creches e amas integradas no sistema de cooperação da Segurança Social presume que existem 250.000 vagas para as nossas crianças – quando, na verdade, a Carta Social de 2020, já indicava que, nesse ano, existiam apenas cerca de 118.000 vagas de creche e nem todas abrangidas pelo sistema de cooperação. Ou seja, a insuficiência do sistema de cooperação deixou, no triénio 2019-2021, mais de metade das crianças fora da resposta social ou equiparada das creches.

Mas será que num país com baixos rendimentos, licenças de parentalidade tão curtas e reformas tão tardias, os pais de mais de 50% das nossas crianças podem não precisar de as deixar na creche? Preciso tanto que é por isso estes pais –- tantos pais –- não têm outras opções que não recorrer às creches particulares sem acordo de cooperação (com o custo financeiro daí decorrente), ficarem em casa com os filhos ou entregar os seus filhos a amas ou instituições clandestinas, às vezes com os desfechos tão tristes que é impossível esquecer.

Mesmo limitando este exercício aos nascidos apenas após setembro de 2021 e cujas licenças de parentalidade possam já ter terminado a 1 de setembro de 2022 (data em que a gratuitidade se aplicou), seria necessário prever já cerca de 50.000 vagas adicionais num sistema que nunca esteve, infelizmente, capacitado para as garantir.

Ora, é aqui que as creches que estão fora do sistema de cooperação podem desempenhar um papel fundamental. Estas creches –- que, em Portugal são cerca de 600 –- podem receber parte destas crianças, ao abrigo das mesmas regras que permitem o benefício da gratuitidade no setor da cooperação e sem que isso exija um esforço adicional de investimento público (assumindo que o Estado cabimentou a medida para o universo de potenciais beneficiários).

E, é por isso, que se deve apreciar positivamente que Governo tenha anunciado em agosto que começou a negociar com o setor particular das creches para alargar a gratuitidade a crianças em instituições fora da cooperação. E até seria de apreciar melhor, se o tivesse feito mais cedo, ao invés de esperar pela contestação do setor e das famílias, pela intervenção da oposição e pelas vésperas da implementação da medida.

Contudo, o anúncio arrisca ser pouco mais do que um plano de intenções (que se junta a tantos outros), porque à data que escrevo as negociações com o setor particular estão… paradas. Mas, mesmo que avancem, já sabemos que a medida já não vai ser alargada antes de janeiro de 2023 (porque claro que o Governo não terá cabimento orçamental para isto e vai ter de a enquadrar no próximo Orçamento de Estado). Depois, porque pretende exigir aos pais destas crianças que passem por um longo calvário de tentar arranjar vagas –- literalmente para não as conseguir — em todas as instituições do sistema de cooperação antes de se poderem candidatar a uma vaga gratuita numa creche privada. A manter-se esta configuração, este alargamento parece mais um oásis do que um porto seguro, e estas crianças –- cujos pais não têm tempo e/ou dinheiro para esperarem por janeiro de 2023 ou irem a todas as dezenas de IPSS e à Segurança Social só por conta de uma única inscrição — vão ficar para trás.

A gratuitidade da creche pode ser a diferença entre uma criança ganhar ou não competências sociais determinantes para um melhor arranque do seu percurso escolar. Ou pode permitir a uma família ponderar ter mais um filho. Também pode contribuir para uma mãe poder voltar para o mercado de trabalho mais cedo ou simplesmente melhorar o rendimento do agregado familiar porque ganha a oportunidade de avançar na carreira. Ou pode, pura e simplesmente, representar mais rendimento disponível para enfrentar a crise.

A gratuitidade da creche é uma política de mobilidade social, uma medida educativa e pedagógica importantíssima, um vetor de promoção de natalidade e de justiça e equidade de género. Não é uma medida que possa ficar refém de preconceitos ideológicos ou sectaristas. E, acima de tudo, Portugal não deixa as suas crianças para trás.

  • Inês Palma Ramalho
  • Advogada e vice-presidente do PSD

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