Crise dos três Governos

A democracia portuguesa está transformada num regime onde circulam “rapazes e raposas”, “caras de espelho” que reproduzem o ambiente à volta.

Portugal já é uma república de juízes. Um ciclo político está a chegar ao fim. E está a chegar ao fim da pior maneira possível e imaginária. A política em Portugal está entregue a personagens pequenas sem visão ou decência. Não há estadistas, não há heróis políticos que representem uma ideia para o país. A superfície democrática esconde a oligarquia dos interesses e das influências. É como se a democracia fosse um grande bazar com reservados para os grandes negócios. Os grandes negócios beneficiam uma pequena elite e a República sofre a demência de um regime novo que sempre foi velho. Velho nos vícios, velho nas ambições pessoais, velho na miséria de quem vem de baixo, velho sem mundo, velho com dinheiro novo. Com a sociedade bloqueada, só a política fornece o elevador social. E o elevador social é a vergonha da Nação.

O país vive a crise dos três governos. E a crise dos três governos é uma crise de Regime. A crise de Regime é o fim de um ciclo. E o fim de um ciclo é o fim de uma era. A nova era na democracia portuguesa exige novas lideranças, novos protagonistas, novas linhas de força para o novo ciclo que terá de ser construído. Não se pense que a mudança de ciclo é um mecanismo automático ou um procedimento constitucional. Há todo um mundo político para além do texto constitucional. A decadência da democracia portuguesa exige o estabelecimento de um novo equilíbrio na relação entre os cidadãos, os representantes políticos e o Estado. Neste momento, a democracia de Abril é uma caricatura em farrapos, uma “falsa fantasia”, um formalismo eleitoral, um Parlamento com conversas de café, uma campanha eleitoral marcada pelo tacticismo de curto prazo. O novo ciclo exige trabalho político que a política se tem recusado a fazer. Nos dias de hoje, Portugal é uma democracia em transição.

Depois eleva-se o alarme político a propósito da subida eleitoral do partido da direita radical. A experiência na Europa desde sempre aponta para a aliança entre contrários, uma espécie de simbiose inversa em que a direita extrema se limita a esperar pelas imprevidências da democracia. A democracia tem esta particular tendência de se perder no “pluralismo” de todas as intenções e de todas as ambições até que o regime começa a evidenciar exactamente aquilo que os radicais denunciam no discurso político. Nepotismo, tráfico de influências, corrupção, o caldo cultural e político que sempre alimenta as ideias extremas, quer à esquerda, quer à direita. Sem ética republicana e decência democrática a democracia arrisca o caos e o caos é a vitória da direita radical. Mais um passo e estamos no discurso proto-fascista de “limpar” a Nação, devolver Portugal aos portugueses, mais o programa para um “Portugal puro”.

Em toda esta situação politicamente impensável e politicamente intolerável, o regime democrático revela uma incontinência moral e uma incompetência fatal. Incapaz de alguma auto-regulação ou de alguma auto-contenção, o mecanismo de controlo político por excelência é a Procuradoria-Geral da República. Accionada por denúncia anónima, a “agência de certificação do sistema” opera como uma verdadeira instância política para a efectiva inclusão e exclusão dos representantes políticos. Estamos na planície política pelos timings, pelos objectos de investigação, pela interferência no jogo político, pela “manipulação da comunicação social”, pelo exercício de um discurso que é político e que tem como função moralizar a política. Um parágrafo derruba um Primeiro-Ministro. Uma expedição à Madeira derruba um Presidente de Governo. A Procuradoria é actualmente o único compasso político da política portuguesa. Emite certidões de conformidade democrática e expede autos de exclusão política sem termo de validade. Mas a denúncia anónima não é digna de uma democracia europeia e consolidada. A denúncia anónima é um dispositivo de regimes políticos fascizantes à esquerda e à direita. Por inveja, ressentimento, vingança, em Portugal a cultura dos informadores da PIDE permanece como uma realidade democrática.

A democracia portuguesa está transformada num regime onde circulam “rapazes e raposas”, “caras de espelho” que reproduzem o ambiente à volta. Um jogo de espelhos e um jogo de enganos. Ocorre-me uma peça de N.F. Simpson intitulada “One Way Pendulum”, um contributo para o teatro do absurdo. Um indivíduo recebe um dia, pelo correio, uma réplica em tamanho real de uma sala de tribunal dentro de um luxuoso estojo. O cidadão monta a sala de audiência na sua sala de estar até ao mais ínfimo pormenor. Subitamente, o indivíduo encontra-se si próprio a ser julgado na mesma sala. O secretário anuncia que no dia em questão, o réu, o nosso herói político, “não se encontra neste mundo”. O juiz, desconfiado e zangado, pergunta: “Em que mundo se encontra, então?”. O secretário com a diligência mecânica de um amanuense finalmente explica: “Parece que o réu tem um mundo próprio”. Os políticos em Portugal vivem num mundo próprio onde a realidade não entra. O choque acontece quando a realidade se faz acompanhar com um “mandado de busca”.

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