Crónica nos Passos Perdidos
O Presidente da Assembleia da República não percebe que a repetição mecânica e acrítica é o retrato da exaustão ortodoxa que se torna efectivamente exaustiva.
Vamos começar com as celebrações do 25 de Abril. Um clássico da temporada acelerado na polémica pelos tempos conturbados. As celebrações são um ritual e a República precisa dos seus rituais. Mas o espectáculo é marcado pela ausência da originalidade e pretende tão-somente a organização da decadência. A prosa não é inspirada nem delicada, são discursos sem alma num cenário cansado.
O Presidente da Assembleia da República dominado pela exaltação dos tempos vê fascistas cibernéticos e populistas digitais em cada fila da galeria, mas não percebe que a repetição mecânica e acrítica é o retrato da exaustão ortodoxa que se torna efectivamente exaustiva.
Há uma palavra que não consigo encontrar no discurso do Presidente do Parlamento – a palavra é “paixão”. Vamos ter uma celebração do 25 de Abril sem paixão política, uma comemoração que sufoca o espírito da data tão profundamente que sobra apenas um suspiro saudosista. A falsa alegria da celebração é que torna a encenação num momento caricato em que escorre pelas paredes a velha tristeza de um Portugal, progressista na aparência, mas salazarista na essência. Abram as cortinas pesadas e deixem entrar o Sol.
Depois vem a figura de Donald Trump em plena conferência de imprensa. Pois que se administre injecções de lexívia a cada cidadão, com descargas descontroladas de raios ultra-violeta, infra-vermelhos, criptonite, mais a luz do Sol, tudo complementado com banhos de espuma na companhia de strippers profissionais.
O Presidente da América esquece-se do tratamento térmico em fornos sofisticados a temperaturas higiénicas que eliminam tudo o que tenha a presunção de permanecer vivo. Há um formalismo bárbaro nas palavras do Presidente que está para além da imaginação extravagante. Trump acrescenta um novo significado ao culto dos Novos Primitivos. O Presidente da América tem neste capítulo todas as qualidades para ser o argumentista de uma série da Marvel, com super-heróis e espécies mutantes que governam o Mundo em direcção à distopia.
Também não podemos ignorar as notícias de um “Novo Barbarismo”. O “holocausto” das gerações mais velhas, recolhidas com desumanidade em pequenos ghettos clandestinos, sociais, longe dos outros e perto da morte. Há uma espécie de eugenia social que se multiplica pela Europa, pelo Mundo, em que um sector da sociedade é abandonado à sua sorte, uma sorte que se confunde com a condenação, o esquecimento, com câmaras escuras de onde as pessoas desaparecem todos os dias. O peso na sociedade dos que ficam é menor, os ventiladores com instruções em chinês podem ser utilizados sem dilemas de consciência, mas a sociedade na sua diversidade construída no tempo e na história fica mais pobre, perde identidade, esvai-se no lapso de uma memória desaparecida.
Os idiotas úteis e os optimistas natos forçam os cérebros limitados para definir o regresso ao “novo normal”. Divisórias em acrílico entre os funcionários, excursões ao WC proibidas, como se os WCs fossem monumentos classificados pela UNESCO. Restaurantes transformados em guichets de atendimento, praias com senhas de racionamento e comissários de multidões, cabeleireiros a funcionar em modelo de atendimento por marcação e listas de espera típicas dos hospitais públicos, cidadãos referenciados por aplicações GPS e relatórios confidenciais de saúde privada tornados públicos, “passaportes de saúde”, “selos de higiene”, a organização da vida social escalonada por escalas e por turnos. Subitamente a regressão é de 50 anos, cada cidadão está transformado numa personagem da grande encenação social que mais parece a organização minuciosa, judiciosa, odiosa, que mantinha a paz e o progresso no Grande Paraíso dos Trabalhadores na plenitude das Repúblicas Populares.
Em termos práticos, programáticos, pragmáticos, há uma certa dissolução do Capitalismo, da Globalização, do Individualismo, da Liberdade. Vamos ter uma legião de comissários e de funcionários a controlar o movimento mínimo escondido em cada gesto dissonante, em cada fábula irónica, em cada discurso irreverente.
Não será por acaso que alguns filósofos pós-marxistas afirmam que esta crise é uma oportunidade para um “Novo Comunismo”. Não o Comunismo de matriz Soviética, mas perante aquilo que designam por “Barbárie do Capitalismo”, só esse outro estádio de organização social poderá salvar a Humanidade da própria Humanidade.
O “Novo Comunismo” está inscrito na acção de um “Estado Eficiente” dotado de um Poder capaz de “violar” e ultrapassar as Regras do Mercado e injectar na Grande Sociedade a dimensão da ordem e do progresso social. A nível global, uma Nova Internacional com fortes vínculos de interacção coordenada e cooperação centralizada. A nível local, o ressurgimento e a mobilização dos Comités Locais, integrados numa grande rede de cooperação solidária e sintonizada para o bem comum. No forte traço de fantasia há um sinistro som político à solta pelas cidades vazias.
A Humanidade encontrou uma enciclopédia imaginária, porque invisível, que nos arrasta para um Novo Mundo criado pelo acaso ou por uma “Sociedade Secreta”. Os objectos físicos, o toque humano, são ideias subscritas pelo reflexo da memória. O Novo Mundo é feito de um metal que não é deste Mundo.
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