Editorial

De Campo Maior a Zurique

Os valores que se percebem na gestão de Rui Nabeiro fizeram falta na gestão do Credit Suisse e na missão das autoridades financeiras do país.

Rui Nabeiro morreu aos 91 anos, uma vida cheia de um homem consensual. Rui Nabeiro deixa um legado que vai muito além do próprio grupo empresarial que criou, assenta em valores que devem ser preservados. Valores que, em Zurique, no centro financeiro da Europa, foram mais uma vez esquecidos, o que obrigou a um novo ‘bailout’ privado com garantias públicas de um banco, o Credit Suisse.

Rui Nabeiro deixa-nos, pelo menos, três lições.

A política de rendimentos e distribuição de riqueza: A Delta Cafés nasceu em 1961 em Campo Maior a partir de um armazém de 50 metros quadrados e uma pequena máquina de torrefação, hoje fatura mais de 460 milhões de euros, tem negócios diversificados e cerca de quatro mil trabalhadores, mas nunca perdeu o sentido de proximidade, em primeiro lugar, e de partilha de criação de riqueza, com os seus funcionários e com a comunidade. O Poder de Compra per capita por distrito — números da Pordata — mostram que o Alto Alentejo tem uma média e 86,5% da média nacional, mas qual é o concelho que se destaca, de longe? Pensou bem, Campo Maior, com 95,8% da média nacional. A criação de valor serve para investir e para redistribuir.

A preparação da sucessão: Rui Nabeiro foi um ‘self-made man’, construiu um grupo do zero, são conhecidas as histórias do início do início, o contrabando entre Portugal e Espanha, chegou a ser condenado por fraude fiscal na década de 80, processo que o levou a viver em Badajoz, e depois um recurso acabou por o absolver. Os primeiros 20 anos foram feitos a pulso, num país atrasado e num interior, Alto Alentejo, ainda mais atrasado. O grupo fez-se com risco, com inovação, com crescimento, sem perder o sentido de proximidade, mas Rui Nabeiro sabia mais do que todos os outros que teria de preparar o dia seguinte. E fê-lo com tempo. Rui Nabeiro e os filhos concordaram em passar a liderança executiva para o neto, a terceira geração, a Rui Miguel Nabeiro, que foi preparado para a função, academicamente e com experiência na própria empresa. O maior legado vão os valores, mas o grupo, e a Delta Cafés, está preparada para continuar a crescer.

O valor dos empresários num país que não gosta deles. Por uma coincidência, o ministro da Economia tinha afirmado esta semana que o país não gosta das grandes empresas, e sobretudo das empresas que têm lucros (mas talvez fosse útil também dizer isso em Conselho de Ministros, just saying…). O grupo Nabeiro tem muito sucesso, e lucros. E só isso permitia fazer o que Rui Nabeiro fazia, investir nas empresas do grupo e também redistribuí-los. Num país que não gosta de empresários, e menos ainda do lucro, a história de Nabeiro servirá de exemplo para a comunidade e para outros empresários? Para a comunidade que parece não perceber que as empresas têm de ter lucros, e para os empresários e gestores que têm a obrigação de partilhar a criação de riqueza com os trabalhadores que contribuem para esses resultados.

E em Zurique, sucedeu o que parecia impossível depois da crise de 2008. Um banco de dimensão global, sistémico, em risco de ruir e de arrastar, atrás de si, bancos americanos e da zona euro, num processo cujo desfecho financeiro, económico e social seria imprevisível.

Em primeiro lugar, a reputação das autoridades de supervisão e de garantia da estabilidade financeira do país saem de rastos. Como é possível a Suíça ter deixado o Credit Suiss ter chegado onde chegou? Depois de financiamentos, como ao grupo Archego, que geraram milhares de milhões de perdas, o Credit Suisse foi ao mercado, fez um aumento de capital, convenceu acionistas privados a investirem capital num banco que, dizia-se, já tinha reconhecido todas as perdas. Afinal, não parece…

Somos, em Portugal, particularmente severos com o desempenho dos reguladores, e com razões para isso, mas o que se passou na Suíça é demasiado grave para passar sem crítica, e sem a exigência de mudanças. Pior, a Suíça está fora do euro, mas a sua complacência, para não dizer outra coisa, põe em causa a estabilidade do espaço do euro, por isso, o BCE deveria reavaliar as exigências que põe na relação com as instituições que estão debaixo da supervisão suíça.

Num fim de semana louco, o Governo e as autoridades de supervisão obrigaram o UBS a comprar o Credit Suisse por cerca de três mil milhões de euros, sem passar pela aprovação dos respetivos acionistas. No país dos referendos, o poder político e financeiro impôs uma solução à força, e foram obrigados a dar linhas de liquidez de 100 mil milhões de euros e uma garantia pública de nove mil milhões para créditos.

O Governo e o banco central bem podem repetir que o ‘take over’ do Credit Suisse pelo UBS resulta de uma solução privada, mas a verdade é outra. É um ‘bailout’ privado com garantias públicas, dos contribuintes suíços. Como é que os mercados vão reagir a esta operação? Não é óbvio, até porque uma das condições da compra foi ‘limpar’ 17 mil milhões de obrigações de investidores. Veremos nas próximas horas.

O facto é que os rácios de capital reforçados do Credit Suisse e a linha de liquidez anunciada na quinta-feira passada de cerca de 50 mil milhões de euros não foram suficientes para convencer os depositantes que, no dia seguinte, deixaram perceber que o fim do Credit tinha chegado.

Neste fim de semana, de Campo Maior a Zurique, os valores e a governação foram evidenciados no melhor e no pior.

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