Deixemos a pateta devolução das propinas para trás

Num sistema injusto, devolver as propinas cegamente é ineficiente e agudiza este sentimento de desigualdade e beneficia ainda mais os mais ricos. Chamar-lhe ‘Prémio Salarial’ é o cúmulo da ironia.

Na passada quinta-feira, o governo anunciou que está a reavaliar a continuidade do mecanismo de devolução das propinas, criado em 2024. Lanço aqui o repto, já é tarde para acabar com este mecanismo ilógico, este nado-morto político. Para populismo já chegam os extremos.

A política de devolver o valor das propinas aos estudantes que fiquem cá a trabalhar (mesmo aos bolseiros que viram os seus estudos já pagos por bolsas das DGES) é um bombom aos convencidos. A devolução anual da licenciatura é de 697€ e do mestrado é 1500€. Alguém acha, verdadeiramente, que algum jovem licenciado que pense em emigrar vai deixar de o fazer por 58€ mensais? Afirmar que esta medida reduz a emigração exige um salto de fé tão grande que custa-me a crer que alguém acredite. É uma consolação para os que não querem emigrar.

Para além de ineficiente, já na altura me chocou o pressuposto. No fundo, os estudantes que comecem a sua carreira contributiva em Portugal estiveram a financiar o Estado durante 5 anos, para no fim este devolver o dinheiro. Ainda por cima sem juros – o verdadeiro financiamento barato. E mais, não tem em conta nem o rendimento dos pais, que podiam ter financiado os estudos, nem o rendimento que os estudantes ficam a auferir depois de licenciados ou mestres. É completamente cego.

Por princípio duvido sempre de apoios cegos, ainda para mais num tema como estes. A propina é baixa, aliás baixíssima. Segundo o Instituto Mais Liberdade, em 2022, o custo real médio de um aluno nas Universidades de Lisboa e do Porto era 7x superior às propinas, representando estas apenas 13.8% do financiamento. 65% deste é financiamento dos contribuintes, mesmo dos pais daqueles que não conseguiram estudar no ensino superior. É um sistema perverso. No fim disto, devolver as propinas aos que tiveram o privilégio de estudar, muitos dos quais podiam financiar os seus estudos, mas tiveram-nos pagos por pais e avós que não conseguiram por os seus filhos e netos no ensino superior é imoral.

Vejamos mais alguns factos. A propina máxima da licenciatura hoje é a mais baixa desde 2002/03 e o congelamento desta desde 2020/21, provocou uma significativa redução real do seu custo, atendendo aos consideráveis índices inflacionários registados no pós-pandemia. Segundo o Simulador de Inflação da Pordata, o valor real da propina congelada desde 2020 aos preços de hoje seria 79€, o que significa que o seu congelamento resultou numa redução real do seu valor na ordem dos 13%.

Paralelamente, a bolsa pública da DGES é, no seu valor mínimo, 125% do valor da propina, sendo atribuída a estudantes de rendimento per capita do agregado familiar inferior a 23 vezes o valor do IAS, ou seja, 11 712.98€, em 2024/25. Deste modo, sendo o valor da propina residual e havendo bolsas de estudo um tanto inclusivas para os estudantes com comprovadas necessidades económicas, não me parece sério, atualmente, considerar a propina o principal entrave à frequência de uma licenciatura.

Num país onde, segundo os testes PISA (2022), os alunos mais ricos desempenhavam 33% acima dos mais pobres a matemática; onde 44 das 50 escolas com melhores notas nos exames nacionais (2023) eram privadas; onde enfermagem tem mais do dobro de bolseiros que medicina; onde, segundo um estudo do ISCTE, frequentar o ensino superior custa, em média, 900€ mensais (sendo a propina menos de 10%) e onde o alojamento em Lisboa e no Poto, em média, custa mais de 400€ mensais, centrarmos o nosso debate sobre os entraves no acesso, anualmente, no congelamento ou eliminação da propina é um alheamento brutal da realidade.

Os entraves são muitos, às vezes vêm de onde nem se espera. Revestem-se de múltiplas formas e não começam no secundário, muito menos no 12º ano. Começam no dia do nascimento de cada bebé. Ali boa parte da vida futura da criança pode ser antecipada e cabe à sociedade impedir que as portas já estejam fechadas. Propinas baixas são apoios sociais aos mais ricos com os impostos dos mais pobres, são redistribuição inversa. O nosso sistema é este: o Cristianinho se quisesse ser meu colega na FEP pagaria 70€ e se dependesse do BE e do PCP, nem sequer pagaria.

Num sistema injusto, devolver as propinas cegamente é ineficiente e agudiza este sentimento de desigualdade. Acaba por beneficiar ainda mais os mais ricos. Chamar-lhe ‘Prémio Salarial’ é o cúmulo da ironia, no máximo é uma espécie de helicopter candy. Não é prémio salarial nenhum quando é momentâneo e mau estaríamos se o prémio de estudar fossem as propinas devolvidas. Emigrar não cria problemas. O problema está em não voltar. E se queremos que os jovens qualificados voltem, criem-se condições: por exemplo, aumentar o prémio salarial das qualificações, mas não este, o verdadeiro.

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