Em mar de piranhas, jacaré nada de costas (IV)

As andanças de um turista num mar de turistas, o mundo de Wes Anderson numa exposição e o fecho em grande do Centre Pompidou com Wolfgang Tillmans.

Millôr Fernandes, genial escritor brasileiro, cético profissional e mestre da ironia, publicou em 1994 um livro chamado ‘Millor Definitivo A Bíblia do Caos’, em que resume o seu pensamento em 5 142 frases sobre quase tudo: do serviço militar ao sexo, da cirurgia plástica ao cinismo, passando pela morte, pelo humor, pela moral e até por Woody Allen – ‘o infeliz que deu certo’. Lembrei-me deste livro a propósito da forma como Millôr define o turista: ‘Um idiota que se julga poliglota’.

As filas intermináveis, a praga dos tuk tuk, a descaracterização dos bairros mais tradicionais que se tornaram cenários instagramáveis, o desaparecimento da maioria das lojas tradicionais e a especulação imobiliária que afasta os habitantes locais dos grandes centros urbanos, deixam a pairar um sentimento de culpa no viajante, no flâneur movido pela curiosidade e pela vontade de descobrir. Confesso que tenho tido esse sentimento crescer a cada viagem que faço – não que me sinta idiota, talvez, apenas, um membro de um rebanho ainda por cima sem fé.

Esta semana, estive em Paris e a sensação ressurgiu. Na segunda-feira, o Musée du Louvre fechou as portas por uma circunstância inesperada: Uma greve de funcionários que protestavam contra a sobrecarga de trabalho e a falta de casas de banho, de áreas de descanso e o sobreaquecimento do espaço, face à multidão de turistas que diariamente visitam a instituição. Só em 2024, o Louvre recebeu a visita de 8,7 milhões de visitantes, dos quais mais de 75% eram estrangeiros.

Na mesma semana, um artigo do Le Monde abordava a turistificação e falava em asfixia das cidades. Três cidades eram consideradas casos emblemáticos deste fenómeno: Paris, Lisboa e Veneza. A capital portuguesa registou um crescimento de 9,3 milhões de turistas para 15,3 milhões em nove anos. Paris teve um crescimento de 3, 5 milhões entre 2014 e 2024, e Veneza, um aumento de 2 milhões no mesmo período.

Não se condena aqui o crescimento e a democratização do turismo. Longe disso! No entanto, tudo isto nos deve fazer pensar na necessidade de regular o turismo e de viajar com responsabilidade e sensatez. Porque viajar, mesmo quando nos faz sentir idiotas ou membros de um rebanho, é das melhores coisas do mundo. E assim deve continuar.

Os arquivos de Wes Anderson

A Cinémathèque Française – um edifício parisiense, projectado por Frank Gehry -, alberga uma notável exposição sobre o cinema de Wes Anderson e, sobretudo, sobre os seus arquivos.

Wes Anderson sonhou aos 10 anos ser arquiteto e realizador de cinema, acabou a estudar filosofia e, ironicamente, nunca entrou numa escola de cinema. A sua filmografia inclui obras-primas como a Família Tenenbaum (2001), Moonrise Kingdom (2012), O Grande Hotel de Budapeste (2014) ou Asteroid City (2023). A exposição da Cinémathéque, em co-produção com o Design Museum de Londres, revela o seu processo de trabalho obsessivo e a curadoria meticulosa na escolha dos acessórios sempre personalizados (vestidos, fardas, chapéus, sapatos, fotografias, livros, obras de arte, caixas de fósforos, binóculos, cantis, marionetes, maquetes, máquinas de escrever, frascos de perfumes, notas escritas à mão) que alimentam o culto em torno dos seus filmes.

Estes arquivos de souvenirs fictícios constituem uma parte nuclear do mundo criado por Wes Anderson. Jason Schwartzman — um dos membros da troupe de atores, cenógrafos e compositores que o cineasta considera como família -, explica a importância destes objetos: “No Grande Hotel de Budapeste tudo era fictício, mas se abríssemos uma gaveta, os acessórios que estavam no seu interior eram todos reais. Não existe, de um lado, a vida quotidiana, e, do outro, os filmes. Os dois são apenas um, de uma maneira autêntica. E todos passamos a viver nesse universo“.

No seu mais recente filme – The Phoenician Scheme -, Anderson pediu o empréstimo de pinturas e esculturas originais a vários museus e de diamantes e rubis à Cartier.

Numa entrevista ao Cahiers du Cinema, explicou a razão: “Queria utilizar obras verdadeiras em vez de fabricar falsos ou pastiches. Os cenários transformam-se numa espécie de museu“. A sua teoria é que perante uma obra verdadeira, que tem obviamente o seu peso e a sua aura, o desempenho do actor é, também ele, mais verdadeiro, mais completo.

No também extraordinário catálogo da exposição, Wes Anderson confessa o seguinte: “Sempre disse a mim próprio: guarda tudo. Porque não sabemos se, talvez, um dia, alguém tenha o desejo de ver”. Esta tendência acumuladora está na origem de uma exposição que permite perceber o sentido de uma obra, a sua coerência e o seu génio. Vale a pena ir a Paris para a ver.

A exposição Wes Anderson estará na Cinémathèque Française (Rue de Bercy, 51, em Paris) até 27 de julho. O preço do bilhete é de 14 euros.

Tillmans na despedida do Pompidou

O Centre Pompidou foi uma encomenda feliz do Presidente Georges Pompidou a uma equipa de arquitetos constituída por Renzo Piano, Gianfranco Franchini, Richard Rogers e Su Rogers.

Inaugurado em 1977, o emblemático centro cultural e de exposições em Paris prepara-se agora para fechar as suas portas durante cinco anos para uma profunda remodelação. Até lá, e para uma despedida em grande, o Pompidou apresenta uma exposição do artista alemão, Wolfgang Tillmans, que ocupa os espaços livres dos 6000 metros quadrados da biblioteca pública de informação situada no segundo piso do edifício.

´Rien ne nous y préparait Tout nous y préparait’ é o assertivo nome da exposição que reflecte sobre os tempos de conflito e de extrema fragilidade que vivemos. Nela presenciamos quarenta anos de criação artística de um dos maiores fotógrafos contemporâneos em diálogo com vídeos, música e objetos pessoais do artista. Uma segunda razão, entre tantas outras, para começar ou retomar uma relação apaixonada com a cidade de Paris.

 

A exposição de Wolfgang Tillmans estará patente no Centre Pompidou até 22 de setembro de 2025. Na loja do Centre Pompidou pode adquirir os discos em vinil de Wolfgang Tillmans, uma faceta menos conhecida do artista.

  • Colunista regular. Diretor Geral e Administrador da Fundação EDP

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