Entre marido e mulher não se meta a vender empresas

  • André Moreira Simões
  • 10:55

Se o princípio da imutabilidade visa salvaguardar a estabilidade das relações patrimoniais entre cônjuges, as dinâmicas empresariais modernas parecem reclamar uma maior flexibilidade.

A recente polémica envolvendo a transmissão de participações sociais entre o Primeiro-Ministro e a sua esposa suscita relevantes questões jurídicas que transcendem a dimensão política do caso.

Afastando a questão da moção de censura, interessa-nos a noção de cultura jurídica que subjaz ao caso, particularmente no que concerne à intersecção entre o direito da família (relação entre cônjuges) e o direito das empresas (empresas familiares).

As empresas familiares, frequentemente transmitidas entre gerações, sejam as milionárias como a da série “Succession”, ou mais humildes, são a base do tecido empresarial português, representando 70 a 80% das sociedades comerciais. Esta realidade é reconhecida pelo legislador, e de acordo com a legislação societária, em princípio, a sociedade nem terá de prestar o seu consentimento à transmissão de participações sociais, sendo o único “sim” necessário para a transação aquele que seja trocado entre os cônjuges.

No entanto, a transmissão suscita particulares desafios no contexto do direito matrimonial, especialmente quando confrontadas com o “princípio da imutabilidade dos regimes de bens”. O princípio da imutabilidade estabelece que, após a celebração do casamento, os cônjuges ficam impossibilitados de alterar substantivamente as regras relativas aos seus bens. Noutras palavras, uma vez casados sob um regime de bens, para sempre casados sob esse regime.

Uma das manifestações mais significativas deste princípio traduz-se na impossibilidade de um cônjuge vender ao outro. A violação desta proibição é sancionada com a nulidade do negócio jurídico, podendo ser invocada a todo o tempo e por qualquer interessado.

Regra geral, os cônjuges podem criar empresas, mas não podem vender ao outro a sua participação social.

Para além disso, no direito português, na ausência de convenção antenupcial, os cônjuges encontram-se sujeitos ao regime da comunhão de adquiridos. Este regime tem como consequência a existência de “bens comuns” e “bens próprios”, cuja delimitação terá especial relevância em sede de empresas familiares.

No contexto específico das participações sociais, quando estas integram o património conjugal, a sua transmissão entre cônjuges confronta-se com um obstáculo adicional: a impossibilidade lógico-jurídica de um cônjuge transmitir ao outro um bem que é comum.

Em conclusão, o episódio em análise evidencia a complexidade das interseções entre o direito da família e o direito societário no contexto das sociedades familiares. Se por um lado o princípio da imutabilidade visa salvaguardar a estabilidade das relações patrimoniais entre cônjuges, por outro lado as dinâmicas empresariais modernas parecem reclamar uma maior flexibilidade na gestão dos patrimónios familiares. Uma adequada antecipação destes desafios, através de um planeamento cuidado da estrutura da empresa familiar, poderia ter evitado a presente controvérsia, p.e., escolhendo um diferente regime de bens para o casal (separação de bens) e modalidade de transmissão (doação).

Entre marido e mulher, como nos recorda a sabedoria popular em diálogo com o legislador, não se meta a vender.

  • André Moreira Simões
  • Docente e advogado

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