Falemos novamente sobre o “clawback”
A ausência de um claro reconhecimento da natureza tributária do “clawback” é inequívoca fonte de desvantagem para os produtores portugueses.
I. Os primórdios de um estranho artefacto
O já remoto Decreto-Lei n.º 74/2013, de 4 de junho, procedeu à criação de um mecanismo regulatório tendente a assegurar o equilíbrio da concorrência no mercado grossista de eletricidade em Portugal – genericamente objeto de alusão, tanto na literatura e praxis do setor energético, como “clawback”.
Nos termos do referido regime, o “clawback” projeta-se sobre compensações a suportar, por parte dos produtores de energia elétrica nacionais, que tenham beneficiado de “ganhos não expectáveis no referido mercado de eletricidade” e sido provocados por “eventos extramercado” – neste último caso, por referência aos eventos cuja natureza seja considerada como externa ao Sistema Elétrico Nacional (“SEN”).
Nos seus estudos anuais sobre a matéria, a que o Preâmbulo do Decreto-lei n.º 74/2013, de 4 de junho alude, a ERSE tem vindo a identificar como único evento extramercado e externo ao SEN, passível de influenciar o preço do mercado grossista e, bem assim, as receitas dos diferentes produtores portugueses, o regime fiscal existente em Espanha, desde o ano de 2013, incidente sobre os centros eletroprodutores – o Impuesto sobre el Valor de la Energía Eléctrica (“IVPEE”).
Recorde-se que está em causa um tributo cujo regime, depois de sujeito a várias suspensões, voltou a ser integralmente aplicado em 2024.
Em suma, a introdução do “clawback” teve como pressuposto o nível e o estado de implementação do Mercado Ibérico de Eletricidade (“MIBEL”) e, bem assim, a forma como o processo de integração europeia se reflete nos principais mercados europeus de energia elétrica, expondo o mercado grossista de eletricidade a diversos fatores que, pese embora exteriores (e nessa medida, à luz do regime, “extramercado”), são passíveis de determinar relevantes alterações ao seu modo de funcionamento e, por essa via, ter um impacto estrutural sobre a formação dos preços.
II. Os inevitáveis anacronismos do “clawback”
Conforme decorre dos respetivos pressupostos, a imposição do “clawback” acaba por ser a decorrência de um princípio de neutralidade concorrencial entre produtores no contexto do MIBEL.
A expressão deste princípio de neutralidade conta, inclusive, com reflexo no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 74/2013, de 4 de junho, na alusão aí efetuada ao “equilíbrio da concorrência no mercado grossista de eletricidade em Portugal”.
Assim, poderia concluir-se que, numa ótica de política energética setorial, a introdução do “clawback” tem essencialmente por base assegurar a eficiente formação dos preços médios da eletricidade no mercado grossista em Portugal e, em última instância, a tutela da posição dos consumidores nacionais.
Todavia, não poderá ignorar-se a circunstância de o desequilíbrio que está na base da sua própria criação ter por referencial uma medida inequivocamente fiscal, no caso o IVPEE espanhol.
Por isso mesmo, o “clawback” parte igualmente de uma oneração tipicamente fiscal para tributar, junto dos produtores portugueses, uma tipologia de ganhos que se consideraria, de algum modo, injustificada em contexto de mercado – numa tenaz aproximação à figura dos “windfall gains” e, desta forma, aos próprios “windfall profits”, que inclusive foi reconhecida pela ERSE.
Este tipo de sinais, por demais evidentes sobre a natureza fiscal do “clawback”, vêm colocar à tona os principais riscos que o respetivo regime suscita: ao ser construído como um verdadeiro “imposto-espelho” face ao IVPEE espanhol, o “clawback” tem natureza assumidamente tributária, mas sem que o respetivo regime o transpareça, com a clareza e transparência necessárias, facilitando a tarefa do regulador e, bem assim, dos demais intérpretes e aplicadores daquele primeiro.
III. O “clawback” enquanto imposto especial sobre a produção de energia elétrica e os seus desafios futuros
Sem prejuízo da sua propensão regulatória, em especial no contexto intra-MIBEL, o clawback assume-se (de resto, como o próprio IVPEE espanhol) como um imposto sobre a atividade de produção de energia elétrica.
Para tal aponta, desde logo, a respetiva estrutura de incidência objetiva, parametrizada pelo valor do €/MWh, por unidade de energia injetada na Rede Elétrica de Serviço Público (“RESP”), independentemente da tecnologia empregue na produção de energia elétrica pelos centros eletroprodutores abrangidos – conforme decorre do Despacho n.º 3034/2024, de 21 de março, da Secretária de Estado da Energia e Clima.
Mais uma vez, este tipo de estrutura reclamaria que o próprio legislador assumisse a real natureza tributária do “clawback”
E se tal já seria necessário por razões de conformidade constitucional – sobretudo, insista-se, quando em Portugal e Espanha vigoram regras semelhantes, por exemplo ao nível da legalidade fiscal – seria igualmente preponderante para que fossem definidos por lei quais os eventos extramercado que devem ser considerados como equivalendo a desvantagens competitivas dos produtores a operar em Portugal.
Reportamo-nos a casos tão diversos como os do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (“ISP”), da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (“CESE”) ou da própria Tarifa Social (e respetivo mecanismo de financiamento), justificando-se que a sua relevância, enquanto eventos extramercado que afetam a posição dos produtores nacionais, conste no próprio regime, evitando flutuações à mercê das considerações da respetiva tutela (porventura legítimas numa ótica de politica energética, mas impróprias para um regime que não deixa de consagrar um imposto).
Só desta forma será possível assegurar um nível de discussão e exigência para com o legislador em tudo semelhantes ao que, em Espanha, sucede com o IVPEE.
Afinal, a ausência de um claro reconhecimento da natureza tributária do “clawback” é, ela própria, inequívoca fonte de desvantagem para os produtores portugueses.
Talvez a assunção desse reconhecimento seja o passo necessário para que se pondere a continuidade do “clawback, num momento em que é cada vez menos evidente a existência de uma efetiva vantagem dos produtores portugueses – não ignorando, evidentemente, os desafios de diplomacia fiscal que daí decorrem para o contexto ibérico.
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