Com o país ocupado em romarias a norte e a banhos a sul, retoma-se a normalidade de uma indiferença que tem tanto de mediterrânico como de atlântico.

As urgências dos hospitais em Portugal não têm a estabilidade das estações de serviço. Nem os lucros das petrolíferas. Mas recebem uma parte substancial dos impostos dos portugueses para se entreterem numa lotaria nacional rotativa – ora agora abres tu, ora agora fecho eu. A ginástica nacional consiste em saber se a criança nasce aqui ou a 50 km, dependendo dos caprichos da natureza e da vontade de quem vem ao mundo com a liberdade de escolher. Ou talvez não. Enfim, este é o contributo do governo para a grande batalha da “produção biológica”, para o prosperidade demográfica de um país que não é para velhos porque não sabe ser para novos. Aliás, as mães de Portugal deviam revoltar-se contra a lotaria dos recursos e viajar para o país vizinho para aí reforçarem o contingente espanhol na demografia Ibérica.

Se geografia é destino, o governo devia saber que a demografia é a economia do futuro – recursos novos para uma nova economia ao serviço do progresso de todos e da independência nacional. Se o SNS não acolhe novos portugueses, os portugueses do futuro serão forçosamente imigrantes à procura de um destino maior num país menor. Neste ponto a política de saúde converge com a política de imigração num arranjo social que escapa à inteligência do governo. É desta “dissonância política” que nascem as “teorias da substituição” que alimentam os delírios eleitorais da direita radical e de um certo regresso ao passado em forma de assim. Sublime e sereníssima é a soberania.

A greve dos médicos continua a infectar as consultas externas nos hospitais com exames cancelados, cirurgias feitas em episódios que se confundem com temporadas de uma série em registo streaming. Na circulação das ambulâncias e dos táxis em fila de espera, afinal faltam médicos, afinal sobram médicos. Os médicos consideram as propostas do ministro como “aberrantes”, o ministério aos costumes diz nada e pois que sim porque está tudo a ser resolvido. Propostas salariais medíocres, horas extraordinárias estratosféricas, salas de consulta fechadas e volte daqui a dois anos para fazer análises. Num impulso revolucionário o ministério quer contratar médicos cubanos para colmatar as “falhas do sistema”. Em rigor, o ministério quer alugar médicos ao governo cubano para a grande batalha do desenvolvimento da saúde nacional. Proposta típica do “terceiro mundo” que faz lembrar o exército cubano na guerra civil em Angola. Historicamente a doutrina divide-se.

As finanças também recorrem a este sistema de lotaria rotativa e burocrática. Fecham porque não têm funcionários. Abrem mas só atendem por marcação. Em casos extremos e em tempos de alterações climáticas os contribuintes são atendidos debaixo de um esplendoroso céu ao abrigo das arcadas do governo. Há qualquer coisa de medieval neste recurso bucólico em ambiente urbano para cobrar aos portugueses os recursos para pagar o que os contribuintes não recebem em serviços dirigidos à dignidade da cidadania. A máquina fiscal é eficiente no que convém ao governo e disfuncional no que respeita ao contribuinte. Com ou sem limitações no serviço, os suplementos e as coimas mantêm a sua impenetrável exigência democrática. Pagar impostos é um privilégio que só uma nação de ingratos não reconhece. E os portugueses são o apogeu da ingratidão. Vejam como os suecos pagam em silêncio e no frio da Escandinávia sem um protesto e com uma exótica alegria. Ninguém percebe que Portugal quer ser a nova Suécia entre o mediterrâneo e o atlântico.

Parece que os diplomatas também se querem juntar à multidão de ingratos. Com carreiras esmagadas, salários congelados, com condições sociais e financeiras para exercer a dignidade da representação diplomática reduzidas ao mínimo, os diplomatas contemplam a possibilidade de uma greve. Extraordinário como o glamour da diplomacia é destruído pela proletarização dos “ministros plenipotenciários” da República. Afinal, um embaixador tem o valor de um comissário político em tempos soviéticos – vale como um funcionário fechado na câmara de eco.

Viajando para o país profundo revela-se a exclusão de parte do território da rede de cobertura bancária. Em tempo de lucros exuberantes, os bancos perderam qualquer noção da função social que desempenham na fábrica da coesão nacional. Agências que fecham, serviços mínimos desempenhados por máquinas ATM em perigo de serem abatidas ao balanço. Parte dos portugueses ficam assim impedidos de ter acesso a numerário, de poder pagar as contas, obrigados a percorrer 30 km para descontar um cheque. É a parte esquecida de um país que esquece facilmente na sua homérica ingratidão. Entretanto, as florestas ardem, discute-se o IVA do pastel de bacalhau e a política é o cemitério de uma nação que há muito esqueceu o “dever de deslumbrar”.

Com o país ocupado em romarias a norte e a banhos a sul, retoma-se a normalidade de uma indiferença que tem tanto de mediterrânico como de atlântico. A política adormecida pelo calor espreita pelo intervalo da realidade como uma alucinação no deserto. Entre o “país, a nação, a pátria”, a identidade portuguesa insiste em apresentar-se como “um pano branco bordado de altar guardado por uma velha zeladora num gavetão de sacristia”. O absurdo de um relógio público parado.

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