Meia dúzia de notas sobre o Orçamento do Estado

Seis reflexões sobre a proposta de OE 2021. João Leão considera que o seu primeiro orçamento como ministro das Finanças não acrescenta crise à crise. Mas também não acrescenta muito no geral.

  1. O mito de Sísifo. Na mitologia grega, Sísifo era um rei astuto, que conseguiu enfurecer Zeus, Hades, Ares e Hermes numa vida só. O que lhe valeu a condenação a, para sempre, empurrar montanha acima uma grande pedra de mármore, a qual, chegando ao topo, fazia questão de rebolar encosta abaixo. O esforço hercúleo e inglório de Sísifo ficou imortalizado na pintura de Ticiano e é esta a imagem que me ocorre ao pensar neste Orçamento de Estado. Há um ano, estávamos a discutir o facto de, pela primeira vez, ser entregue na Assembleia da República uma proposta que não previa défice, isto depois de um duro e longo processo de consolidação das finanças públicas. Pouco gozámos o excedente conquistado em 2019: a pandemia fez-nos regressar ao défice orçamental, que se estima em 7,3% do PIB em 2020 e que se prevê de 4,3% para 2021.
  2. Um “símbolo da Nike” optimista. O cenário macroeconómico subjacente a este Orçamento de Estado prevê um crescimento de 5,4%. Consultando os dados sobre taxa de crescimento real do PIB, vemos que é preciso recuar a 1990 para encontrarmos um crescimento superior a 5%. Mas também não há nessa série histórica qualquer queda comparável à de 2020, que se estima que seja de 8,5%. Uma contracção dessa magnitude põe-nos com um produto ao nível de 2016, o que modera a espectacularidade daqueles 5,4%. Ainda assim, são uns optimistas 5,4%, embora não fujam aos prognósticos de outras instituições, nacionais e internacionais (como se constata no quadro 1.11 do relatório). Subjacente está o regresso do turismo, sector que me interessa particularmente, no qual encontro grandes potencialidades em termos estruturais (nomeadamente, pelo facto de me parecer ir sobreviver relativamente bem aos processos de automação), mas que conjunturalmente enfrenta enormes dificuldades. Há um contexto de enorme incerteza, fruto da própria evolução da pandemia, que condiciona o nível de actividade económica e muito especialmente a procura turística. Por isso, fazer previsões macroeconómicas nestes tempos é ainda mais arriscado que o habitual (e, se habitualmente já é ridículo andar a discutir valores às décimas, agora é completamente absurdo). Mas como as crises têm um quê de profecia auto-realizável, compreendo a necessidade de um discurso que venha aumentar o índice de confiança dos consumidores. E o optimismo é coerente com a visão de que este Orçamento protege o mercado de trabalho, apoia a economia, defende o rendimento das famílias e dá resposta aos desafios estratégicos. Sobre isto, dizer apenas genericamente que me parece importante o papel do investimento público, mas que é fundamental que esse investimento sobreviva a rigorosas análises custo-benefício e que se agradece total transparência.
  3. Algo a reter. Em 2015, em campanha eleitoral, António Costa prometeu que, para o sector público, o subsídio de Natal deixaria de funcionar em duodécimos, regressando ao regime anterior de pagamento único em Novembro. Tive então aturadas discussões sobre o assunto, em que reclamava o direito de escolha, porque não estava particularmente radiante com o adiamento de dez tranches do referido subsídio em troca da antecipação de uma. Para minha surpresa, a maioria das pessoas com quem conversei revelava preferir o sistema de poupança forçada. Lembrei-me disto a propósito da redução das taxas de retenção na fonte de IRS. As duas situações são conceptualmente distintas, mas, na prática, têm pontos em comum. Portanto, é positivo “esbater o diferencial entre as retenções na fonte realizadas pelos trabalhadores dependentes e o valor final de imposto a pagar”, ou seja, diminuir o adiantamento que os contribuintes fazem ao Estado. Mas é bom que estes retenham que, no conjunto do ano, não vão receber mais; em particular, o montante do reembolso, que alguns se habituaram a ver como um segundo subsídio de férias, será menor.
  4. Raspa até ao fundo. Uma das medidas incluídas na Proposta de Lei que aprova o Orçamento de Estado para 2021 consiste no lançamento de um jogo autónomo de lotaria instantânea denominado «Do Património Cultural». Trata-se de uma medida tragicamente recessiva. Ainda este ano, dois investigadores portugueses da Universidade do Minho, Daniela Vilaverde e Pedro Morgado, publicaram na The Lancet – Psychiatry uma carta onde alertam para o crescimento da despesa nos jogos de raspadinha, cujo resultado imediato é propício à viciação. Há vários estudos na Medicina e na Economia Comportamental a mostrá-lo. Tal como há vários estudos a afirmar que este é um problema de saúde que atinge bastante mais as classes mais pobres. É verdade que o Plano de Saúde Mental tem referência explícita na dotação orçamental, mas talvez não valha a pena aumentar as situações a que terá de dar resposta.
  5. Um eléctrico chamado orçamento. Eu vou à Constituição, ao seu artigo 105.º, e fico com a ideia de que o Orçamento de Estado é um documento que prevê discriminadamente as receitas e despesas do Estado e da Segurança Social e onde se definem regras de execução, condições de recurso ao crédito público e critérios para eventuais alterações. De facto, ele é isso, mas, todos os anos, uma inspecção à Proposta de Lei que o aprova me faz encontrar artigos que, embora podendo ter impactos orçamentais, me parecem aproveitar a boleia do Orçamento, como miúdos que viajam à pendura, agarrados ao lado de fora do eléctrico. Este ano não foi excepção. E, assim, não percebo o que fazem na Proposta de Lei 61/XIV disposições relativas à autorização de residência, uma norma que estabelece que o Governo desenvolve medidas de apoio a vítimas de casamento infantil, precoce ou forçado, a criação do Provedor do Animal ou autorizações para o Governo legislar sobre diferentes matérias, designadamente sobre o regime jurídico da concorrência, para referir alguns exemplos.
  6. Uma sensação de déjà vu. Falando sobre o seu primeiro Orçamento de Estado na qualidade de ministro das Finanças, João Leão descreveu-o como não acrescentando crise à crise. Concordo. Mas não deixo de notar que me parece não acrescentar muito no geral. Uma comparação entre a Proposta de Lei que aprova o Orçamento de Estado para 2021 e a que aprovava o Orçamento de 2020 mostra que continuamos a tentar fixar população no interior, garantir médicos de família para todos ou retirar o amianto dos edifícios; são muitas as semelhanças entre os dois documentos, o que nos deve fazer questionar porque é que certos problemas parecem ter lugar cativo nos orçamentos e planos estratégicos para o país.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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