Não, Assange não é um herói

Julian Assange sempre teve um projeto de promoção pessoal e terá muito por que responder na justiça. Mas não neste caso concreto.

Julian Assange, o fundador da Wikileaks que foi preso esta semana em Londres, está longe de ser um herói maltratado pelos poderes públicos. O homem que se escondeu numa embaixada estrangeira fê-lo para escapar a acusações de abuso sexual na Suécia, um dos países com sistema judicial mais credíveis do planeta. Assange negou as acusações, mas preferiu não responder em tribunal e optou por fugir. Um dos processos já expirou, mas a vitima do outro pediu ontem mesmo que se reabrisse a acusação, de forma a dar seguimento à queixa.

Ao longo dos anos, a sua máquina de publicação de denúncias sem escrutínio expôs vítimas de violação e homossexuais na Arábia Saudita, dados pessoais de oposicionistas na Turquia e emails pessoais de milhões de inocentes. Já no seu asilo voluntário na embaixada do Equador em Londres, coordenou um ataque ao partido Democrata americano, em conluio com hackers russos, servindo de intermediário para fornecer informações a Donald Trump – e participar na maior manipulação democrática de que há memória nos tempos modernos.

Julian Assange é uma figura desprezível que tem muito por responder, mas não neste caso que o pode levar à extradição para os Estados Unidos (que expôs as mentiras sobre o comportamento do exército americano na invasão do Iraque). Esse foi um caso de verdadeiro interesse público e, no limite, uma condenação do sueco pode vir a servir de desculpa a futuros ataques a jornalistas.

Querem heróis? Têm Chelsea Manning e Edward Snowden, que pagam bem caro pelas denúncias do sistema a partir de dentro. Manning já está a cumprir a segunda pena de prisão e pode não sair de lá tão cedo; Snowden tem a vida destruída e continua a ser um pária, apesar da importância da informação que revelou e do modo responsável como o fez. Na história recente há mais heróis destes: O anónimo que revelou os Panama Papers entra certamente nesta definição, não só pelo feito mas também pela forma – tal como Snowden, preferiu trabalhar com jornalistas responsáveis que filtraram a informação e pouparam inocentes.

Também o anónimo que revelou os abusos na prisão de Abu Ghraib merece honras de destaque, tendo passado a informação que obteve à Amnistia Internacional (que depois trabalhou com jornalistas para desenvolver a investigação). Outro nome importante nesta história é Jeffrey Wigand, o executivo que revelou no 60 Minutes a indústria assassina que se escondia por trás dos gigantes tabaqueiros. Recuando mais no tempo, é impossível esquecer Daniel Ellsberg, que revelou os Pentagon Papers, ou Mark Felt, o Garganta Funda que levou à queda de Richard Nixon. Todos eles são denunciantes e todos eles são heróis.

Comparar Julian Assange com estes nomes é um insulto. O único interesse do sueco foi agigantar o próprio nome, por isso procurou sempre a estridência para maximizar os efeitos do seu trabalho. Pelo meio, foi responsável pelo sofrimento de inocentes, ajudou a descarrilar processos democráticos e ainda foi acusado de abusos sexuais. Não parece alguém que mereça grande estatuto. Assange será certamente uma personagem pop com lugar na história da revolução digital, mas não ficará bem visto nos cânones do século XXI.

E, já agora, o mesmo princípio deve ser aplicado a Rui Pinto, que tanto tem entusiasmado alguma classe política nacional. Se ele for efetivamente o autor das Football Leaks, estará em boas condições para ser um herói. Mas nestas coisas a motivação é tudo: se fez hacking para ganhar dinheiro através de chantagem, como é acusado, será um ladrão vulgar que se limitou a usar um computador para executar o seu crime – e os tribunais aí estarão para julgar e condenar. Se, ao contrário, estiver inocente, deve ser protegido e o seu trabalho no Football Leaks devidamente avaliado por quem de direito, de forma a abrir caminho a investigações que possam realmente fazer a diferença.

Há muitos denunciantes que sofreram na pele as consequências dos seus atos. Assange não entra, definitivamente, na lista dos heróis. Sobre Rui Pinto, ainda é cedo para saber.

Ler mais: Por uma vez recomendo um livro que ainda não foi publicado e que, naturalmente, ainda não li. A obra chama-se Whistleblowers: Honesty in America from
Washington to Trump e promete ser uma análise profunda dos denunciantes nos duzentos e cinquenta anos de história americana, relacionando-a com a tecnologia e a liberdade. A autora é Alisson Stanger, especialista em relações internacionais, professora universitária e consultora dos negócios estrangeiros dos EUA. A data de publicação está marcada para 24 de setembro e para aguçar o apetite está aqui uma aula da autora sobre a importância da desobediência civil e dos denunciantes.

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