Não será necessário explicar o óbvio
Não será necessário explicar o óbvio. Como se pode aceitar, num Estado de Direito Democrático, que a entidade que acusa, detém ou julga um Cidadão ou cidadã, lhe possa escolher o defensor?
A linha do tempo da história de Portugal, com quase 900 anos, tem apenas 50 anos dedicados à democracia e à construção de um verdadeiro estado de direito democrático.
As comemorações dos cinquenta anos do 25 de abril, no passado ano, devem servir para nos lembrar quão curta é a nossa experiência democrática, quão ténues são as linhas que nos separam de outros regimes menos democratas e em perspetiva, trazer-nos a consciência que 50 anos são apenas uma ínfima parte da história do nosso país.
Com estes factos em mente não podemos, pois, baixar a guarda. A construção de uma democracia tem que ser feita todos os dias e, sobretudo, tem que ser defendida todos os dias, em todos os momentos e em todas as circunstâncias.
A Ordem dos Advogados, que no próximo ano irá completar 100 anos de existência, acompanhou e patrocinou o aparecimento e desenvolvimento da democracia portuguesa e é, até aos nossos dias, parte ativa da construção do nosso estado de direito democrático.
Não temos, nessa medida, qualquer modéstia quando afirmamos que a Advocacia teve (e tem) um papel fundamental e determinante nas mudanças sociais que se operaram (e operam) no nosso país.
Uma advocacia livre e independente é um pilar fundamental de sustentação da democracia, da liberdade e da evolução social e não podemos deixar hoje de lembrar o ataque que foi feito a esta liberdade da profissão, no último ano, quando se impôs a esta classe uma alteração do seu estatuto profissional que, entre outras alterações, obrigou à criação de um Conselho de Supervisão presidido por um não Advogado e abriu a prática de atos próprios da advocacia a não advogados, fazendo perigar o próprio estado de direito democrático, com um facilidade assustadora.
A Ordem dos Advogados existe, não para a salvaguarda de qualquer interesse egoístico da classe profissional que representa, mas sim, para garantir que ninguém, sob qualquer circunstância, possa violar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, cidadãs e empresas do nosso país.
Aliás, é esse o seu primeiro desígnio que eu e o meu Conselho Geral cumprimos todos os dias, quando nos posicionamos ao lado dos reclusos e reclusas quando estes denunciam, com total razão, a falta de condições que garantam a sua dignidade humana nos estabelecimentos prisionais portugueses, ao lado das mulheres quando estas exigem mais e melhor acompanhamento jurídico quando são vítimas de crimes violentos, ao lado das crianças e jovens, quando exigem ter acesso a mais informação acerca dos seus direitos, ao lado dos imigrantes, quando estes necessitam de apoio e aconselhamento jurídico para regularizar a sua permanência no nosso território e aqui trabalhar e viver em paz, ou quando nos colocamos ao lado da sociedade portuguesa quando esta exige, como é seu direito constitucional, melhor acesso à justiça, com um sistema de custas que não afaste as pessoas dos tribunais quando deles necessitam para garantir os direitos que a lei lhes confere.
Mas a Ordem dos Advogados também tem alguns desafios internos que urge resolver. E pese embora nos custe, ano após ano, exigir as mesmas mudanças, não nos cansaremos de o fazer até que os poderes políticos respondam de forma a garantir quer um tratamento digno no sistema de acesso ao direito e aos tribunais, quer uma previdência digna desse nome aos nossos e nossas associadas.
E voltamos a fazer o exercício inicial e convidando à ponderação sobre a maturidade do nosso sistema democrático, na perspetiva de existirem portuguesas e portugueses que, por via da sua profissão, são impedidos de aceder aos mais básicos direitos sociais, como sejam o apoio na parentalidade, na doença ou na quebra abrupta de rendimentos.
Podemos afirmar que Portugal evoluiu muito, mas podemos também dizer, de forma muito assertiva e clara, que temos ainda um longo caminho a percorrer, quando excluímos cidadãos e cidadãs do acesso a estes apoios apenas por via da profissão que escolheram exercer. Não há qualquer justificação para manter este estado de coisas quando a nossa Constituição é clara na garantia a todos e todas destes direitos básicos de previdência.
Temos consciência que está a ser feito um trabalho sério nesta matéria, porém a Ordem dos Advogados também sabe, porque isso lhe é comunicado todos os dias por muitos/as profissionais, que a falta de apoio afasta milhares da profissão que sonharam exercer, coloca em situação de fragilidade e grande precariedade inúmeros profissionais que exercem a sua atividade trabalhando para outros colegas, o que confere um carácter de urgência na alteração deste paradigma, pedindo-se celeridade, objetividade e assertividade aos nossos decisores políticos.
A urgência não significa que se aceite qualquer prejuízo ao nível quer dos direitos adquiridos pelos reformados ou contribuintes da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, quer em termos de qualquer prejuízo para aqueles/as que ainda estão a construir a sua reforma.
Esta urgência exige-se porque tem de ser respeitada a capacidade contributiva da advocacia, à semelhança do que acontece com os restantes trabalhadores independentes, mas também, e principalmente, porque têm de lhe ser garantidos os seus direitos sociais de apoio na doença, na parentalidade e, como já acima referi, perante uma quebra abrupta de rendimentos.
No que tange o Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais, começamos por chamar a atenção para o facto de que é a Ordem dos Advogados que garante e gere esse sistema, através do seu sistema de comunicação interno nacional (SinOA) que de forma automática responde, em tempo real, às necessidades de todos os tribunais, órgãos de polícia criminal do país e meios de resolução alternativa de litígios. Onde é necessária a presença de um ou uma Advogada, a Ordem garante que um profissional lá estará.
Foi, por isso, com estranheza que tomamos conhecimento da portaria 235- A/2024/1, de 26 de setembro que, de acordo com o seu preâmbulo, visa suprir uma falha de regulamentação da Portaria n.º 10/2008, de 3 de janeiro, ao não prever qualquer solução para as situações em que a nomeação de defensor não possa ser feita com base na lista de escala de prevenção elaborada pela Ordem dos Advogados.
Ora, não existia (nem nunca existiu) aqui qualquer falha. Podemos afirmar que este serviço público garantido pela Advocacia sempre funcionou, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano, desde a sua criação até à presente data. Não sabemos se podemos dizer o mesmo de qualquer outro serviço público, ainda para mais se recordamos que os honorários pagos aos profissionais que garantem o sistema, não são atualizados há 20 anos, dois meses e umas quantas horas.
A alteração à portaria que foi feita consiste, sim, num perigoso ataque à independência e transparência do sistema, porque este passa a permitir que, em circunstâncias que na letra da lei são específicas, mas que na prática diária são bastante mais generalistas, possa o Ministério Público, o Juiz ou o órgão de polícia criminal, escolher o advogado/a nomeado/a ao cidadão/ã que dele necessita.
Não será necessário explicar o óbvio. Como se pode aceitar, num Estado de Direito Democrático, que a entidade que acusa, detém ou julga um Cidadão ou cidadã, lhe possa escolher o defensor?
A criação e manutenção desta portaria fere a independência do sistema de acesso ao direito, ofende o estado de direito democrático, viola a transparência que o mesmo sempre garantiu e mais não é do que uma ilegalidade, já que através dessa portaria se desrespeita de forma grosseira a Lei do Acesso ao Direito.
A Ordem dos Advogados continuará a pugnar junto dos tribunais pela alteração imediata desta portaria, porque a mesma não garante a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e das cidadãs, não querendo sequer cogitar a hipótese (pese embora ela seja altamente provável) de que esta alteração tenha sido uma resposta ao protesto justíssimo da Advocacia, que decorreu entre os meses de agosto a outubro de 2024 e que tinha por exigência a atualização da tabela de honorários aplicável ao sistema de acesso ao direito e aos tribunais.
A atualização da tabela de honorários é uma exigência com mais de 20 anos que se espera que venha rapidamente a ser concretizada, uma vez que esta já não responde nem à organização judicial existente em Portugal, nem aos atos que os cidadãos e cidadãs necessitam que sejam praticados para garantia dos seus direitos, mas não corresponde também à obrigação do Estado de garantir uma remuneração digna aos profissionais que participam no sistema.
A revisão da tabela está em curso e, pese embora a Ordem dos Advogados não tenha feito parte do Grupo de Trabalho que foi constituído para a rever e atualizar, durante a fase de auscultação fizemos questão de contribuir e indicar aquelas que consideramos que são as alterações imprescindíveis que devem ser feitas, em prol dos direitos dos cidadãos e cidadãs, mas também para garantir a justa remuneração dos serviços prestados.
Esta atualização e revisão, bem o sabemos, terá que ter uma magnitude que contemple os 20 anos de espera. Não é aceitável exigir que uma classe profissional altamente qualificada continue a prestar os seus serviços com valores estipulados em 2004, sem que se perspetive uma atualização que consagre todas as mudanças que ocorreram neste hiato temporal.
Aguardamos a versão final dessa nova tabela que o atual Governo se encontra a elaborar, certos de que fomos claros quanto aos patamares mínimos de mudança que devem existir e do compromisso claro, por parte desse mesmo Governo, quanto à continuidade dos trabalhos com vista a atualizações futuras que permitam, por um lado, manter atualizados os atos abrangidos e por outro, alcançar uma verdadeira justiça na valorização do trabalho prestado por estes profissionais.
A Ordem dos Advogados enquanto instituição praticamente centenária tem estado sempre disponível para juntamente com as entidades públicas resolver com efetividade os problemas dos cidadãos e das cidadãs.
Nessa medida assinou nos últimos dois anos protocolos de cooperação com o Ministério da Defesa Nacional e com a AIMA, com vista a unir esforços para, de forma célere, resolver problemas que, à semelhança dos da advocacia, há anos aguardam resposta por parte das populações.
No que diz respeito ao protocolo com o Ministério da Defesa Nacional o mesmo visa resolver a pendência relativa aos processos de classificação de Deficiente das Forças Armadas, cujos atrasos lesam os direitos dos antigos combatentes, pessoas que na sequência dos serviços prestados ao seu país, sofreram danos físicos e psicológicos que exigem uma atenção urgente, sendo que a Ordem dos Advogados, consciente da sua importância e relevância, prontamente se disponibilizou para ajudar a dar resposta rápida a esta problemática, que é, naturalmente, uma questão de direitos humanos.
No mesmo sentido, e numa outra situação que também coloca em causa os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos/ãs, a Ordem dos Advogados entendeu colaborar com a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, ajudando aquela entidade na instrução dos processos de concessão de prorrogações de permanência, de autorizações de residência, de renovações de autorização de residência, de afastamento, bem como de concessão e renovação de autorização de residência para atividade de investimento, de forma a terminar com a pendência existente, garantindo que, de futuro, existem respostas em prazo razoável aos pedidos que são formulados pelos imigrantes.
A Ordem dos Advogados pode (e deve), nestas e em inúmeras outras circunstâncias, colaborar com as entidades públicas no sentido de prestar um melhor serviço aos cidadãos e cidadãs. Esta sinergia apenas traz benefícios e é dever do Estado garantir que responde às expetativas daqueles a quem serve, contando sempre com esta Ordem para o fazer.
Não existe, por isso, qualquer necessidade de nos encontrarmos aqui, ano após ano, para apontar os problemas de sempre, quando estamos todos e todas disponíveis para prestar um melhor serviço aos utentes da Justiça.
É essencial que os Governos ouçam os operadores judiciários, lhes deem a confiança que merecem e lhes proporcionem condições dignas para o exercício das respetivas funções.
Não necessitamos de uma Justiça sempre em esforço, sempre com atrito porque não temos recursos humanos, plataformas informáticas que funcionem, ferramentas de apoio que nos auxiliam e um edificado com condições mínimas para o acolhimento de quem ali trabalha e das populações, precisamos, isso sim, de valorizar as pessoas, o seu trabalho, com dignidade e respeito.
No próximo ano a Ordem dos Advogados fará, como já o disse, 100 anos de existência.
É mais antiga Ordem Profissional do nosso país.
As comemorações desse centenário convocam todos e todas para a importância do exercício da nossa profissão. Sem advogados e advogadas não há justiça e sem Ordem dos Advogados que garanta as suas prerrogativas, não existe um verdadeiro Estado de Direito Democrático.
Apelamos, assim, a que o Estado Português, se junte ao que está a ser feito no Conselho da Europa com a Convenção para a proteção da profissão de Advogado/a e reconheça, de forma inequívoca, a essencialidade desta profissão, o respeito que é devido aos seus e às suas profissionais e que se coloque sempre ao seu lado na defesa das prerrogativas da profissão (como são o seu sigilo profissional e a sua independência), sendo, por isso, fundamental e imperiosa a revogação da alteração efetuada na nossa Lei de Atos Próprios, no Estatuto da Ordem dos Advogados, na Lei das Sociedades Profissionais e até na Lei das Associações Públicas Profissionais, no que tange, entre outras, a obrigação da existência de um Conselho de Supervisão.
Para que subsista um sistema democrático e para que exista sempre alguém que diz não, temos obrigatoriamente de reconhecer o papel da Advocacia. A Advocacia tem que ter proteção para que possa exercer a sua profissão sem medo, sem restrições e sem amarras.
Nas palavras do nosso Bastonário Pedro Goes Pitta, que foi o Bastonário da nossa Ordem entre 1957 e 1971 “O destino do homem é lutar, lutar sempre. Na nossa Ordem luta-se também. Pelo direito, pelos direitos dela e dos seus componentes. É a sua finalidade.” e contam com a Ordem dos Advogados para com a total transparência que tem marcado este bastonato, com a frontalidade que nos é reconhecida, trabalhar e lutar sempre!
A Justiça e o país precisam de trabalho feito, porque é apenas com trabalho, com meios e com dignidade que conseguiremos efetivamente resolver os problemas das pessoas.
* Este texto corresponde ao discurso, na íntegra, da bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, proferido a 13 de janeiro de 2025, na cerimónia de abertura do ano judicial.
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