Ninguém protege o cidadão digital

A DECO trocou um processo por abuso de privacidade contra o Facebook por atividades colaborativas. Os portugueses ficaram a perder, mas a associação deverá ficar a ganhar.

Com grande fanfarra, e consequente enorme cobertura mediática, a Deco anunciou em maio de 2018 que iria processar o Facebook em nome dos portugueses, por causa do abuso dos dados pessoais em resultado do caso Cambridge Analytica. A proposta era tentadora: quem aceitasse participar na ação conjunta iria ganhar até duzentos euros por cada ano de utilização da rede social, em nome do direito à privacidade e “contra o uso abusivo dos dados dos utilizadores”. Claro que, a reboque da campanha, aproveitou para angariar mais alguns associados, tendo conseguido 63323 participantes na ação (segundo dados da própria associação). Agora, de forma muito discreta e apenas com uma notícia publicada, ficou a saber-se que a associação de defesa do consumidor decidiu trocar a litigância por “atividades colaborativas” com a rede social, defendendo que hoje “os Termos de Serviço do Facebook” já estão no sentido pretendido pela DECO.

Vale a pena então recordar o comportamento anti-consumidor do Facebook, esse paladino da privacidade que a DECO parece agora ter descoberto. Comecemos no mês em que o processo em tribunal foi anunciado: Em maio de 2018, uma falha no sistema fez com que os posts privados de 14 milhões de utilizadores se tenham subitamente tornado públicos; quatro meses depois, o Facebook admitiu que os dados de perto de 90 milhões de utilizadores foram expostos a tráfego malicioso; e passaram mais seis meses até que se descobriu que pelo menos 600 milhões de utilizadores tinham as suas passwords copiadas em simples ficheiros txt, acessíveis aos mais de dois mil funcionários da empresa. Chegamos a abril de 2019 para descobrir que 540 milhões de utilizadores tinham os dados expostos num servidor público – e isto ocorreu no mesmo mês em que se conheceu mais um abuso de confiança por parte da rede social, quando se revelou que a empresa estava a usar indevidamente os emails pessoais dos utilizadores para melhor afinar o seu sistema de distribuição publicitária. Em setembro e dezembro de 2019, mais duas falhas de segurança: mais 730 milhões de afetados. Se o caso Cambridge valia os tais duzentos euros, quanto valeriam estes constantes e repetidos abusos de privacidade? Para a DECO, absolutamente nada.

É mais do que óbvio que, para o Facebook, a insegurança dos dados é o padrão. Porquê? Porque a proteção dos utilizadores é simplesmente algo que é irrelevante para os seus serviços e para o retorno financeiro que acumulam todos os anos. Aliás, um email interno enviado por engano para um jornal belga confirmou que a tática é assumir que estas coisas são normais e que se devem esperar mais violações de privacidade destas no futuro: “é importante enquadrar isto como uma ampla questão da indústria e normalizar o facto de que estes acontecimentos se repetem regularmente.” É nestes senhores que a DECO diz ver mudanças importantes que defendem o consumidor…

O Facebook representa tudo aquilo que a DECO contesta – ou deveria contestar. E este acordo dá um sinal muito errado aos cidadãos sobre aquilo que o Facebook é, mas também sobre a defesa que a DECO diz fazer do consumidor. Não duvido que, daqui a algumas semanas, surja o anúncio de um projeto em o Facebook irá despejar algumas centenas de milhares de euros para “proteger os consumidores” europeus, tendo como interlocutores estas associações que agora desistiram do processo, e que irão acabar por ganhar promoção extra com tudo isto. Mas isso só vai piorar a situação e contribuir para enganar os cidadãos, que estão tudo menos protegidos. Num tema em que a ignorância dos utilizadores é gritante, seria ainda mais importante que associações da sociedade civil surgissem – como aliás existem em muitos países da União Europeia. Mas aqui o que se vê é que quem devia proteger o cidadão o deixa cair nas malhas de quem o explora e abusa da sua confiança.

Precisamos rapidamente de uma ASAE para o setor digital, dedicada a lidar com os abusos online. Essa sim, poderá ser uma entidade capaz de pôr os interesses dos cidadãos em primeiro lugar e de os proteger contra os abusos, sem ceder ao poder comercial de entidades como o Facebook.

Ler mais: O que é mais impressionante em toda esta história é a assertividade da DECO aquando do lançamento da ação contra o Facebook. O seu texto promocional está cheio de razões cuja relevância só aumentou desde que foi publicado, pelo que esta decisão é incompreensível para quem diz querer proteger os consumidores. Como a página deve cair mais cedo ou mais tarde, uma cópia está já guardada no Wayback Machine.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Ninguém protege o cidadão digital

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião