
No Rossio com guitarras à janela
Os candidatos a Primeiro-Ministro têm de perceber que não é através do confronto entre a virtude da esquerda e a virtude da direita que se vai resolver o impasse democrático.
Há um ano o debate entre os dois pretendentes a Primeiro-Ministro teve lugar num teatro habituado ao vaudeville da revista à portuguesa. Em redor, uma guarda de honra clandestina de polícias manifestava-se pelo direito ao “subsídio de risco”. Desta vez o debate ocorre na sequência das celebrações do 25 de Abril e dos confrontos no Rossio entre neo-fascistas e neo-democratas. Os imigrantes, alvo da manifestação proibida, não passaram de meros espectadores neste conflito local entre forças que se odeiam. Afinal o ódio é mais democrático do que se pode pensar – odeiam-se os nossos tal como se odeiam os outros. O debate para Primeiro-Ministro tem um prólogo com o líder do PS na Avenida da Liberdade e o Governo confortável à janela.
Desta vez a polícia não encostou ninguém à parede. Talvez pelo facto das paredes do Rossio serem a montra de tantas lojas de luxo. A polícia é patriótica e não quer perturbar o fluxo normal dos turistas e a circulação regular da economia. A “beleza de matar fascistas” tem destas coisas – declarar vitória e recuar. Convém sublinhar que um dos movimentos é liderado por um juiz expulso da magistratura, enquanto a outra associação tem como símbolo o ano da fundação de Portugal e é comandada por um neo-fascista de reconhecidas credenciais e registo criminal. O alvo da imigração transforma-se numa luta interna à democracia portuguesa. Enquanto os activistas militantes debatem em tribunal as medidas de coacção, os líderes partidários debatem perante o tribunal da opinião pública a ambição política de governar Portugal. Não há qualquer equivalência moral entre os dois momentos, mas simplesmente a distância que distingue a democracia liberal do ritual extremo da “democracia do ódio”. Os portugueses não devem ficar surpreendidos com a defesa da “liberdade de expressão” feita pelo CHEGA – É a estratégia da “democracia unitária”.
De volta à imigração que tanto tem carburado o debate político entre PS e PSD. Parece que o país tem cerca de um milhão e meio de imigrantes. Discute-se a “política das portas abertas”, discute-se a exigência de uma “imigração regulada” baseada em critérios económicos, discute-se o conceito humanista de que “nenhum ser humano é ilegal”, discutem-se abstracções à distância que acabam na realidade em conflitos no centro da capital em plena celebração da liberdade. Mas a liberdade de quem? A liberdade de quem é imigrante ou a liberdade de quem nunca foi imigrante? Para os neo-fascistas a visita ao Rossio no dia dos cravos tem o aspecto de uma incursão a um território nacional ocupado. Na mentalidade destes grupos o país está transformado numa “colónia”, o país é alvo de uma conspiração internacional para concretizar a “grande substituição” – a ocupação da Europa por uma nova população migrante com a mudança completa dos hábitos e dos costumes e a edificação de uma Nova Europa. Para estes grupos neo-fascistas o país sofre de uma ameaça existencial. A estratégia da provocação e da brutalidade é um modo de fazer política que a democracia apenas consegue controlar através da intervenção das forças da ordem. Discursar com os punhos ou argumentar com agressões é comum a todas as forças da direita radical por que essa é a sua forma de fazer política – intimidar, destruir, dominar.
O CHEGA pertence a esta família política só que em vez de polos pretos e Doc Martens veste fatos a preceito e gravatas de seda. O discurso é o mesmo apenas adaptado ao “entrismo” democrático e parlamentar, mas a violência simbólica transpira por entre as sílabas e a mensagem política tem o primarismo dos comícios e o ódio das ruas ocupadas por imigrantes. O CHEGA é uma espécie de “movimento de libertação” que quer salvar Portugal do mundo e reduzi-lo à pureza ideal e lusitana. A não ser nos meios e no cinismo, nada distingue o CHEGA das tropas de assalto do Rossio no dia da Revolução.
É verdade que esta direita radical prospera pela Europa na base do medo e da incompetência dos partidos clássicos. Para alguns, esta direita radical resulta da falta de memória histórica, da “saturação democrática”, mas sobretudo porque se apresenta com um conjunto de velhas ideias cujo novo tempo parece ter chegado. Nada está definido enquanto tudo estiver definido.
Os portugueses percebem agora que preferem maiorias. E maiorias absolutas. Não existe a possibilidade de qualquer maioria enquanto um “partido de libertação” estiver no parlamento com 50 deputados. Os portugueses têm de corrigir esta “disfunção eleitoral” para contornar a “herança social” da instabilidade e da ingovernabilidade.
Os candidatos a Primeiro-Ministro têm de perceber que não é através do confronto entre a virtude da esquerda e a virtude da direita que se vai resolver o impasse democrático. PS e PSD têm de ter a coragem dos novos tempos, não a cobardia das velhas ideias. Os estadistas não se fazem de poses, mas de um golpe de asa político. Fica a sugestão e a imagem viral de um debate eleitoral em plena Basílica de São Pedro.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
No Rossio com guitarras à janela
{{ noCommentsLabel }}