O Banco Português de Fomento
O banco de fomento vem responder, não a uma falha de mercado, mas sim a uma falha de governo do sector financeiro. A dúvida é saber se a falha se corrige com mais governo ou com mais mercado.
Portugal enfrenta um problema de financiamento que se vem manifestando desde há muito. É assim que interpreto o enorme desfasamento entre o crescimento económico registado desde o final de 2013, altura em que o PIB português voltou a crescer, e a contração do stock de crédito concedido pelo sector financeiro desde então. Entre 2013 e o final de 2019, o PIB nominal em Portugal tinha crescido cerca de 25%. Já o stock de crédito concedido às empresas não financeiras diminuíra 25%. Trata-se de um padrão que não é normal numa economia em crescimento e é com este pano de fundo que surge agora o Banco Português de Fomento (BPF).
Já aqui escrevi muitos artigos sobre a elevadíssima concentração bancária em Portugal que, depois, se traduz em reduzida concorrência e, sobretudo, na cristalização de certas estratégias e práticas bancárias que prejudicam o financiamento da economia. Entre estas, destaco a reduzida aportação de crédito às empresas de bens transaccionáveis, face ao seu peso no valor acrescentado bruto da economia, por oposição a uma desproporcionada aposta no crédito imobiliário. A falta de financiamento de fundo de maneio para PME. Ou ainda a crónica exigência de avales pessoais aos sócios de empresas de responsabilidade limitada.
Para estimular a concorrência, teria sido necessária em Portugal uma atitude proactiva dos reguladores no sentido de promover a entrada de novos operadores. Mas nada disso aconteceu. Por exemplo, no domínio dos bancos digitais, enquanto outros países lançavam leilões para atribuição de licenças a novos entrantes, em Portugal o melhor que os reguladores conseguiram foi a criação de um burocrático Portugal Finlab (para darem a conhecer a legislação aplicável ao “fintech”!). De igual modo, também as directivas europeias de “open banking” foram transpostas com atraso, beneficiando incumbentes em prejuízo da inovação e de consumidores.
Neste panorama, o banco de fomento vem responder, não a uma falha de mercado, mas sim a uma falha de governo do sector financeiro. A dúvida é saber se a falha se corrige com mais governo ou, preferencialmente, com mais mercado. A ideia não é nova, porque a Instituição Financeira de Desenvolvimento (IFD), apesar de coxa, foi criada para funcionar como banco de fomento há já vários anos, e também não é original, porque na Europa existem muitos casos análogos. Mas a proposta do Governo assume uma abrangência invulgar. Desde logo, porque o Governo solicitou à Comissão Europeia que o novo BPF venha a actuar como banco de retalho.
Nas declarações aos jornalistas, o primeiro-ministro procurou passar a mensagem de que o BPF não concorrerá directamente com os bancos comerciais. Mas, em face dos propósitos enunciados para o BPF, é evidente que o mesmo fará concorrência directa aos bancos comerciais. O próprio António Costa falou em “poupar mais um grau de intermediação” e afirmou também esperar que a nova instituição estimulasse “a banca comercial a ser mais competitiva no apoio às empresas”. Além disso, ao entrar nos seguros de crédito, o BPF também irá concorrer com as seguradoras. O mandato é potencialmente muito vasto.
É tentadora a ideia de utilizar o BPF para espicaçar o sector financeiro. Como disse antes, há um problema de financiamento em Portugal que resulta da excessiva concentração do sector financeiro. Mas a entrada do BPF no mercado de retalho levanta problemas, relacionados com o governo da própria instituição, que seriam mais fáceis de gerir caso o banco ficasse limitado a uma actuação essencialmente grossista. O risco é a instrumentalização do banco para fazer política, em vez de financiar a economia. O risco é fazer do BPF um instrumento de subsidiação empresarial, contrário aos interesses dos contribuintes, e desnivelando a concorrência.
Os bancos de fomento dedicam-se habitualmente ao financiamento de outras entidades financeiras, numa lógica grossista, impondo condições para financiarem determinados segmentos, mas ficando o risco de crédito das operações financiadas no balanço das entidades intermediárias. Em Portugal, isso poderia passar pela aportação de financiamento destinado a sectores que, em face do seu peso no valor acrescentado bruto ou do seu ritmo de crescimento, estivessem sub-representados nos stocks de crédito dos bancos comerciais. Poderia também passar pela abolição de avales pessoais nos empréstimos a empresas de responsabilidade limitada, financiados indirectamente através do BPF, incentivando também a capitalização das empresas pelo reforço dos capitais próprios das sociedades.
Um banco de fomento também é útil para dinamizar os mercados de capitais. Por um lado, porque estas instituições financiam-se, elas próprias, através de emissões obrigacionistas nos mercados locais. Reforçam assim a oferta e a concorrência na captação de fundos. Por outro lado, estas instituições também adquirem titularizações de crédito originadas por terceiros. Para além de permitirem aos bancos comerciais a renovação das suas carteiras de crédito, permitem também o acesso indirecto das empresas, designadamente PME, aos mercados de capitais. Trata-se de incentivar a diversificação das fontes de financiamento das empresas. Desta forma, alavancando capitais privados, o banco de fomento pode produzir externalidades positivas.
Todavia, os bancos de fomento oferecem desafios consideráveis do ponto de vista institucional. Encontram-se numa delicada encruzilhada: entre os agentes da economia privada e o Estado. Por um lado, devem apoiar-se no sector privado a fim de identificarem áreas bancáveis. Afinal, são instituições financeiras, não de caridade. Mas, por outro lado, alinham a sua participação no financiamento da economia em função da acção governamental. Têm de ser proactivos nas relações com ambos, sem subserviências, e com autonomia (e competência) de gestão. Mas requerem muitíssimo escrutínio. Se o mandato for estreito, o escrutínio será mais fácil de fazer. Se for muito lato, como aquele que resulta da proposta do Governo, será mais difícil.
Em face das vicissitudes do nosso sector financeiro, creio que há lugar para um BPF – ainda que eminentemente grossista e mais circunscrito no seu mandato. Mas este é também o momento de abrir o sector a maior concorrência entre os operadores privados, através da atribuição de licenças como outros países têm feito. Há que reforçar o mercado, para reforçar também a eficiência e a avaliação dos programas que o BPF vier a promover. Por exemplo, na Alemanha, os programas de eficiência energética promovidos pelo KfW, através dos bancos comerciais, são avaliados anualmente, não só pela sua rentabilidade financeira, mas também pelo número de activos financiados, emissões CO2, poupanças obtidas e empregos criados. Em Portugal não poderá ser diferente. A introdução de um banco público de fomento sem a diversificação do sector financeiro privado seria um desastre, precisamente porque levaria ao equívoco da intervenção directa do Estado e à atrofia do já reduzido número de privados.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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