O capital financeiro não é o inimigo da habitação. É parte da solução

A crise da habitação que atravessa a Europa não será resolvida com slogans, moratórias ou proibições. Será resolvida com mais oferta, melhor planeamento, regulação inteligente e investimento.

Nos últimos anos, tornou-se quase um reflexo automático culpar os fundos de investimento pelos preços elevados da habitação nas cidades europeias. O argumento é conhecido: o capital financeiro comprou bairros inteiros, reconverteu imóveis para turismo, “explorou” estudantes e jovens profissionais com novas formas de habitação partilhada, e contribuiu para afastar os residentes de rendimentos médios dos centros urbanos. Mas será esta crítica justa? E, mais importante, será ela útil?

Pelo menos em Portugal serve para que uma determinada esquerda venha para as televisões, para a rua e até para as capas dos jornais proclamar a “financeirização da habitação” como a grande culpada da crise real que se assiste de acesso à habitação no País. Ora tal é uma análise claramente populista, inoperante (tal como se viu com os inconseguimentos das políticas denominadas de “+ habitação” ) e ainda mais relevante, desfasada daquilo que são as variáveis estruturais em jogo no que ao habitat diz respeito.

Em primeiro lugar, sabemos que a transformação dos modos de vida urbanos nas últimas duas décadas — marcada por maior mobilidade profissional, prolongamento da juventude dependente, globalização académica e preferência por experiências em detrimento da propriedade — deu origem a novas exigências residenciais. O modelo tradicional de habitação fixa e contratualização de longo prazo tornou-se disfuncional para segmentos significativos da população, em especial jovens profissionais, estudantes internacionais e trabalhadores digitais. Esta mutação criou espaço para novas formas de habitação flexível, como o co-living, o flex-living ou as residências construídas de raiz para estudantes (PBSA), que oferecem soluções turnkey, contratos curtos, serviços integrados e localização central.

Em segundo lugar, o mercado imobiliário viu entrar novos tipos de investidores — desde operadores especializados a fundos institucionais — que encontraram nestes produtos uma classe de ativos alternativa com rendimentos estáveis, elevada taxa de ocupação e crescente procura. Esta convergência entre estilos de vida emergentes e estruturas de investimento mais sofisticadas está a reconfigurar de forma profunda a lógica de produção habitacional nas cidades europeias.

Assim, e não há porque escondê-lo, a financeirização do imobiliário residencial é um fenómeno real e estrutural. Com o prolongado ambiente de taxas de juro negativas após 2008, fundos de pensões, seguradoras, REITs e capital privado procuraram ativos alternativos com rendimentos previsíveis. O imobiliário — em especial o residencial urbano — passou a ser visto como um porto seguro. A habitação tornou-se não apenas um bem social, mas também um ativo financeiro com peso crescente nas carteiras institucionais.

Este movimento não foi neutro. Trouxe escala, capital e profissionalização ao setor, mas também elevou os preços do solo e contribuiu para a transformação das cidades em ativos financeiros. Este capital encontrou mercados em crescimento, procura estrutural e regulação permissiva e a consequência foi uma pressão ascendente sobre os preços dos imóveis habitacionais — não por especulação pura, mas porque a lógica do retorno financeiro exige rendas que justifiquem os investimentos realizados.

Associado a este processo surgiu um novo vocabulário habitacional: co-living, flex-living, living as a service, PBSA (Purpose-Built Student Accommodation). Estas formas residenciais não são um capricho dos fundos, mas uma resposta a mudanças reais na mobilidade, no mercado de trabalho e nos modos de vida urbanos. Um jovem profissional que vive entre projetos em diferentes cidades ou um estudante internacional precisa de flexibilidade, serviços integrados e contratos sem burocracia. Os operadores institucionais souberam antecipar essa procura — e lucrar com ela.

Mas seria um erro confundir este fenómeno com a origem da crise de acessibilidade à habitação. O problema de fundo não está no excesso de capital, mas na escassez de oferta. Cidades com planeamento rígido, licenciamento moroso, solo urbano limitado e regras de construção desatualizadas criaram um contexto onde qualquer aumento da procura, seja por turismo, migração ou investimento, resulta inevitavelmente em subida de preços (OECD, 2023).

A resposta política a esta realidade tem oscilado entre a inação e o populismo. Nalguns casos, optou-se por restringir o arrendamento de curta duração ou travar novos projetos residenciais com objetivos de “proteger o tecido urbano”. Noutros, como em Portugal, assistiu-se à revogação de incentivos ao investimento (como os Golden Visa), ao estender dos sistemas de congelamento de rendas e a tentativas mal calibradas de criar habitação acessível com fundos públicos. O resultado foi previsível: retração do investimento, escassez de nova oferta e manutenção de preços elevados.

Precisamos, pois, de uma perspetiva mais liberal para trazer clareza para este tema. O capital financeiro não deve ser visto como um inimigo da habitação, mas como parte da solução. Os fundos têm os meios, o apetite de risco e a capacidade de gestão para aumentar rapidamente a oferta — se o enquadramento legal for claro, estável e favorável à concorrência. Bloquear ou punir o investimento é desperdiçar um aliado estratégico na resolução de um problema estrutural.

O Estado tem, sim, um papel insubstituível. Mas esse papel não é o de promotor direto de habitação — função que, onde foi tentada, se revelou lenta, ineficiente e politicamente vulnerável. O Estado deve ser árbitro imparcial: garantir acesso transparente ao solo, acelerar os processos de licenciamento, assegurar previsibilidade regulatória e premiar os operadores que criem habitação para diferentes perfis de rendimento. E deve também investir em dados: em muitos mercados europeus, continua a faltar informação básica sobre preços reais, compras por fundos, stock habitacional disponível e rendas praticadas (Eurostat, 2024).

As boas práticas existem. Em Viena, o modelo de habitação social mista, promovido em parceria com cooperativas e promotores privados, tem conseguido manter os preços acessíveis sem afastar o capital. Em Helsínquia, o planeamento urbano é orientado por metas claras de produção habitacional e apoiado em plataformas digitais de licenciamento. Mesmo em cidades como Barcelona, que inicialmente adotaram uma postura hostil ao capital privado, começa-se a perceber que a via do confronto gera mais escassez do que soluções.

Portugal, com o seu atraso histórico na produção de habitação nova (entre 2017 e 2022, o parque habitacional cresceu apenas 0,29% ao ano, com menos de 100.000 casas novas no total) e com um mercado urbano altamente pressionado, tem tudo a ganhar com uma abordagem mais racional. Em vez de bloquear o investimento, deve-se canalizá-lo para onde faz falta: periferias bem servidas por transporte público, reabilitação de bairros devolutos, construção para arrendamento acessível com partilha de risco. Para isso, é preciso criar instrumentos financeiros e urbanísticos que tornem esses projetos viáveis para os investidores e úteis para a sociedade.

A habitação não pode ser gerida como um bem puramente financeiro — mas também não pode ser encarada como uma exceção ao funcionamento do mercado. Precisamos de políticas públicas que combinem eficiência económica com justiça social. E isso implica reconhecer que os fundos não são um problema em si mesmos. O problema é quando o Estado falha em criar as condições para que o capital produza mais habitação, em vez de apenas disputar o stock existente.

A crise da habitação que atravessa a Europa não será resolvida com slogans, moratórias ou proibições. Será resolvida com mais oferta, melhor planeamento, regulação inteligente e investimento — privado, institucional, público ou misto. E sobretudo, com coragem política para sair dos extremos ideológicos e recentrar o debate onde ele deve estar: na necessidade urgente de construir mais, melhor e para todos.

  • Colunista convidado. Economista e professor na FEP e na PBS

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