
O CEO da Cloudflare e a frustração que carrego há anos
Matthew Prince não disse nada que nós, empreendedores portugueses, não tenhamos dito vezes sem conta. A diferença é que, quando somos nós a falar, ninguém ouve.
Nos últimos dias, declarações duras do CEO da Cloudflare sobre Portugal, classificando-nos como “um país que não leva os negócios a sério”, despertaram uma onda de indignação. Mas, mais do que indignação, despertaram em mim algo que já carrego há anos: frustração.
Sou um jovem português. Vivi uma década em Londres. Regressei recentemente, como tantos outros, cheio de vontade de contribuir para o meu país. Sou filho de empreendedores que, com sacrifício e paixão, investiram em Portugal. E hoje, escrevo esta carta com um apelo simples, mas urgente: ouçam-nos.
Há 15 anos, Portugal era raramente falado lá fora. Subitamente, os media internacionais descobriram-nos: uma hidden gem, diziam. E com esse olhar externo, também nós começámos a acreditar mais no nosso potencial. O orgulho cresceu. Vieram as startups, os nómadas digitais, os investidores, os talentosos portugueses que tinham emigrado e começaram a pensar em voltar. Mas, com essa oportunidade única, o que fizemos? Criámos verdadeiras condições para os acolher? Facilitámos o investimento? Reduzimos a burocracia? Digitalizámos os serviços? Escutámos quem empreende? Não.
A verdade é dura: desperdiçámos uma oportunidade de ouro. E não podemos continuar a viver de estatísticas triunfalistas que o Governo partilha como se fossem frutos diretos da sua ação, quando muitas vezes são consequência de sorte, de contexto externo favorável, ou do esforço hercúleo do setor privado.
Portugal é um país extraordinário. Pela sua cultura, pela sua beleza, pela sua localização. Isso não se ensina. É um dom. Mas estamos a matar o potencial que nos foi dado, com um sistema público que continua a sufocar quem quer criar valor.
O CEO da Cloudflare não disse nada que nós, empreendedores portugueses, não tenhamos dito vezes sem conta. A diferença é que, quando somos nós a falar, ninguém ouve. A burocracia, os licenciamentos eternos, a instabilidade fiscal, a ineficácia dos vistos para captar talento internacional e a falta de respostas das entidades públicas são problemas estruturais, conhecidos e não resolvidos.
Entidades como a AICEP ou a Startup Portugal foram criadas para encurtar esta distância entre o Governo e o ecossistema empresarial. Mas na prática, continuamos a sentir que há um fosso entre quem toma decisões e quem está no terreno. Em eventos internacionais, como o MIPIM, ouvi investidores estrangeiros perguntarem diretamente: “O que estão a fazer, de concreto, para resolver os bloqueios burocráticos?” E a resposta foi: “Também têm de compreender a nossa cultura”. Quando é que deixámos de distinguir cultura de incompetência?
Temos dois caminhos à frente: ou assumimos, com coragem, as reformas que nos tornam um país competitivo e confiável; ou continuamos a perder o comboio do investimento e a empurrar os nossos jovens para fora. Países como a Estónia eliminaram filas e papeladas, criaram uma identidade digital nacional e permitem abrir empresas em minutos. Em Barcelona, o balcão único para investidores centraliza todas as respostas: simples, eficaz. Em Portugal, ainda esperamos meses por uma licença. Porquê?
É fácil começar: sentem-se com os empreendedores portugueses. Ouçam-nos. Perguntem-nos: ‘o que vos está a travar? Como podemos facilitar o vosso trabalho?’. Porque o empreendedorismo não se incentiva com campanhas de marketing. Incentiva-se com ação, com respostas, com eficiência.
Ao novo Governo, deixo este apelo: trabalhem connosco. Não queremos favores. Queremos ser parte da solução. Queremos transformar Portugal num verdadeiro hub competitivo, com políticas claras, acessíveis e modernas. Aproveitem a sorte que tivemos: a nossa beleza, o nosso clima, o nosso talento. Mas ajudem-nos a construir um sistema que funcione. Porque o orgulho em ser português não chega. É preciso que ser português seja também uma escolha sustentável.
Portugal pode ser muito mais do que uma promessa. Pode ser um exemplo. Mas para isso, precisamos de coragem política, visão estratégica, e acima de tudo, humildade para ouvir.
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