O erro de mais défice

É difícil conceber que economistas reputados possam passar por cima destes pontos e afirmar que a decisão de um equilíbrio orçamental nos últimos dois anos é errada e discricionária.

Sobretudo à esquerda (e sobretudo na extrema esquerda), mas não só, continua a haver quem entenda que nos últimos dois anos (2018 e 2019) Portugal poderia ter tido mais défice. Em 2018, o défice orçamental sem “one-offs” teve um excedente de 0.2% do PIB e prevê-se para 2019 que tenha um superavit de 0.4%.

Várias vozes ao longo destes últimos dois anos têm defendido que o saldo orçamental não deveria ter apresentado um excedente, mas sim um défice. O montante do défice pretendido por algumas pessoas vai variando, mas, por regra, apontam para um valor entre 1% e 2% de défice orçamental, ao invés do ligeiro superavit que Portugal teve em 2018 e terá este ano.

Quem defende um maior défice nestes anos tem vários argumentos:

  1. Recuperar da ideia que os défices vão gerar crescimento económico.
  2. Isso permitiria mais recursos públicos para investir em setores debilitados como a saúde ou os transportes públicos, entre outros.
  3. Entendem que Portugal poderia financiar esse défice com taxas de juro muito baixas (o que se relaciona com o que escrevi aqui na semana passada sobre uma determinada corrente que acha que viveremos muitos anos com taxas de juro próximas de zero e que, por isso, os défices orçamentais passaram a ser irrelevantes).
  4. Argumentam que um défice de 1% ou 2% não violaria a regra do Tratado de Maastricht que impõe um défice abaixo de 3%.

Ora, a meu ver, esta ideia que Portugal deveria neste momento estar com um défice de 1% ou 2% é totalmente errada.

Como tenho vindo desde 2017 a alertar aqui no ECO e noutros fóruns, o problema não é a consolidação orçamental, mas sim a forma como tem sido feita. O problema não é a redução do défice nominal de 3% para um valor de superavit ligeiramente acima de zero. O problema está na fraca consolidação orçamental estrutural.

Basta ver que a redução do défice nominal foi de 3 pontos percentuais (p.p.) do PIB e só a redução dos juros e as receitas do Banco de Portugal (dois efeitos da política monetária do BCE), valem 2 p.p. do PIB (os juros valem 1.4 e as receitas valem cerca de 0.5-0.6). Junte-se 0.3 de redução do investimento público. Ou seja, como tenho repetido inúmeras vezes aqui, 2/3 da consolidação nominal vem de efeitos temporários, não sustentáveis.

A ideia que Portugal deveria ter um défice de 1% ou 2% está totalmente errada por quatro grandes razões:

  1. Económicas.
  2. Financeiras.
  3. Orçamentais
  4. Cumprimento das regras orçamentais.

Está errada por uma razão económica, que é a de que não são os défices que geram crescimento. Nem é o investimento público. Por esta altura, já deveríamos todos ter percebido que uma pequena economia aberta, sem política monetária e cambial, não pode crescer por via de estímulos “keynesianos”. Além que de que os estímulos “keynesianos” devem ocorrer em períodos de recessão, garantindo uma política pró-cíclica. Neste momento, ter um défice de 1%/2% seria ter uma política pró-cíclica. Isto porque estaríamos a expandir o consumo público numa fase de expansão do PIB.

Um défice de 2% PIB implicaria que, ao invés de ter um superavit de 400 M€ em 2019, teríamos um défice de 4.2 mil M€, ou seja, um agravamento de 4.6 mil M€. Isso implicaria que a despesa pública, ao invés de ser 43.5% do PIB (se fosse tudo canalizado para mais despesa, como a grande maioria dos que defendem mais défice entendem que deveria ocorrer, embora alguns ponderassem também menos carga fiscal), seria de 45.7%.

Recorde-se que no início da legislatura a despesa pública era de 44.8%. Logo, estaríamos a agravar a despesa pública em cerca de 1 p.p. num período de expansão. Isso, agravado pela questão da dívida pública (o meu ponto seguinte), faria com que não houvesse qualquer margem orçamental para atuar quando a economia entrar em recessão.

Estaríamos a fazer os erros de sempre: Políticas pró-cíclicas de expansão do Estado num período de expansão económica, e depois, quando vier a crise, voltaríamos a fazer políticas pró-cíclicas de redução do Estado quando a economia está em recessão.

Além de que, se nem numa fase de expansão económica, de quase pleno emprego e de taxas de juro muito baixas, conseguimos equilibrar as contas públicas, então o modelo económico de Portugal está condenado ao fracasso. Dir-me-ão que os serviços públicos e as infraestruturas nunca estiveram pior. É um facto, mas que resulta do enorme desperdício, da má gestão e da profunda incompetência deste governo. Atirar mais dinheiro para isto é apenas desperdiçar dinheiro sem resolver nenhum problema.

Está errada por uma razão financeira, que tem a ver com a dívida pública. Se em 2018 e 2019 o défice tivesse ficado em 2%, a dívida pública, ao invés de ter baixado de 125% em 2017 para 119% em 2019, teria apenas baixado para 124% (ou seja, praticamente tinha estabilizado ao invés de descer).

Ora, um país como Portugal tem de aproveitar este período de alguma bonança económica e de taxas de juro muito baixas para reduzir o máximo possível a sua dívida pública. Só desta forma é possível que na próxima crise a subida da dívida pública não coloque o país novamente numa situação de ter de pedir um auxílio financeiro às entidades Europeias. Deixar o défice subir nestes anos de conjuntura muito favorável é colocar mais pressão na dívida pública e aumentar a probabilidade de voltar a chamar a Troika nos próximos anos.

Está errada por uma razão orçamental. A ideia que Portugal pode ter défices numa fase em que a economia esteve em expansão, em que o desemprego caiu para valores em torno dos 6% (próximo da taxa natural de desemprego) e em que os “windfall revenues” da política monetária (juros e receitas do BdP) valem 2 p.p. do PIB, mostra o quanto errada está a discussão da política orçamental no nosso país.

Se Portugal tivesse em 2019 um défice de 2%, o défice estrutural ao invés de ser 0.5% (de acordo com a Comissão Europeia, sendo que o Conselho de Finanças Públicas tem um valor de 0.8%), seria de cerca de 3% (dado uma componente cíclica de 1%, de acordo com o CFP).

Assim, com um défice nominal de 2% e um défice estrutural de 3%, na próxima crise o défice nominal passaria para um valor em torno dos 5%-6% (as crises em Portugal implicam um efeito orçamental em tornos dos 3-4 p.p.). Com um défice nominal de 2% a dívida pública continuaria a estar nos próximos anos acima de 120%. Uma crise com uma recessão por 2-3 anos levaria a dívida pública para valores acima dos 140% (com défices de 5%-6%/ano).

Ou seja, um défice em 2018 e 2019 em torno dos 2% tornaria a situação orçamental insustentável nos próximos anos.

Está errada por uma razão de cumprimento das regras Europeias. Por último (last, not least), um défice de 2% pode cumprir a regra do défice abaixo dos 3%. Mas não cumpre mais nenhuma regra. Não cumpre a regra do Objetivo de Médio Prazo (OMP) de um saldo estrutural de zero (que, recorde-se, era até este ano de um superavit estrutural de 0.25%; foi a redução da dívida pública que permitiu alguma margem no OMP).

Pelo contrário, um défice de 2% teria não só colocado o défice estrutural muito longe do OMP, como ao invés de reduzir o défice estrutural em 0.6 pp/ano (o chamado “MLSA – Minimum Linear Structural Adjustment”), Portugal teria agravado o défice estrutural em 1 p.p./ano nos últimos dois anos.

Isso teria levado a Comissão Europeia logo em 2018 a abrir um novo Procedimento por Défices Excessivos. Com tudo o que acarretaria de efeito de reputação nos mercados internacionais. Os que defendem mais défice argumentam com as taxas de juro muito baixas, mas nada fazem para que as taxas de juro se mantenham baixas.

Além de não cumprir o OMP e a regra de redução do défice estrutural em 0.6 pp/ano (bem pelo contrário, agravando-o fortemente), também não se cumpriria a regra de redução da dívida pública em 1/20 da diferença do seu valor para o limite dos 60%. Embora esta regra só se aplique a Portugal em 2020, neste momento a regra implica uma redução da dívida pública em 3 pp/ano [redução = (120%-60%)/20 = 3]. Ora, com um défice de 2% a dívida pública praticamente não se reduziria. Por último também não cumpriria a regra do crescimento da despesa corrente primária, que neste momento tem de ser de apenas 0.7%/ano.

É difícil conceber que economistas reputados possam passar por cima destes pontos e afirmar que a decisão de um equilíbrio orçamental nos últimos dois anos é errada e discricionária. Não é errada, como creio ter demonstrado. Também não é discricionária, porque Portugal não controla os ciclos económicos, a evolução das taxas de juro e a política monetária do BCE, o facto de ter uma dívida pública em torno dos 120% do PIB e de continuar a ter um desequilíbrio nas contas públicas do ponto de vista orçamental.

E ao contrário do que alguns pensarão, é possível ter contas públicas equilibradas, com menos carga fiscal e com mais investimento público e melhores serviços públicos. Mas para isso, temos de ter políticas (fiscais, laborais, de redução dos custos de contexto e da burocracia e de melhoria da qualificação profissional, bem como direcionadas para aumentar da competitividade da economia nacional) que promovam o crescimento económico. E temos de ter uma Estado e uma Administração Pública muito mais eficiente. Com uma gestão muito mais profissional. E com muito menos desperdícios. E, por fim, uma clara definição das prioridades nas políticas públicas.

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