O erro de se tributarem as pensões (estrangeiras)

Ao acabar com a isenção total, o regime dos residentes não habituais nunca mais será o mesmo. Provavelmente morreu.

O Governo, ao que parece, prepara-se para uma alteração cirúrgica ao regime fiscal dos chamados residentes não habituais no debate de especialidade do Orçamento do Estado para 2020 (OE2020). A proposta servirá para aplacar a pressão dos partidos à esquerda e, provavelmente, também para acomodar a ala esquerda do próprio Governo PS. Na minha opinião, tratar-se-á de um erro que realçará um outro erro ainda maior: a tributação de pensões de reforma em sede de IRS e a insistência em regimes de Segurança Social assentes em sistemas de repartição.

Relativamente ao regime fiscal dos residentes não habituais, confirmando-se a alteração avançada na imprensa nos últimos dias, os pensionistas estrangeiros que até aqui beneficiavam de isenção total de IRS sobre os rendimentos de pensões (de origem estrangeira) deixarão de beneficiar da isenção. Pelo contrário, estes residentes não habituais pagarão a partir de 2020 uma taxa de IRS de 10%, sujeitos a uma tributação mínima de 7.500 euros por ano. Recorde-se que o regime fiscal dos residentes não habituais foi criado pelo próprio PS em 2009 e, depois de ter estado adormecido durante os anos da troika, ganhou notoriedade nos últimos anos após alguns países terceiros o terem criticado pela debandada de pensionistas, rumo a Portugal, que o mesmo estava a gerar nesses países. É o caso da Suécia que, entretanto, já tratou de alterar a sua parte nos acordos de dupla tributação com Portugal e nos incentivos fiscais em causa.

Nesta questão, há dois pontos de vista a salientar:

  • Primeiro, a isenção fiscal atribuída até aqui a pensionistas estrangeiros sobre pensões obtidas no estrangeiro, constituindo uma dupla não tributação de pensões em sede de IRS – que resulta de acordos internacionais estabelecidos com países terceiros, com vista a evitar a dupla tributação, mas que conferem ao país de residência (neste caso, Portugal) o direito de tributar (ou não) os referidos rendimentos, podendo assim resultar numa dupla não tributação –, não deveria ser resolvida por Portugal, que escolheu não tributar os rendimentos, mas sim pelos países que a protestam.
  • Segundo, a isenção fiscal sobre pensões de reforma, em vez de ser a excepção, deveria ser a regra, tanto para reformados estrangeiros como para portugueses, pela simples razão de que a tributação de uma pensão encerra ela própria uma dupla tributação que deveria ser eliminada.

Sobre a tributação de pensões de reforma, esqueçamo-nos das leis fiscais por um momento e concentremo-nos na questão de princípio. Recordemos, assim, que enquanto trabalhadores activos pagamos IRS sobre os rendimentos de trabalho e entregamos também contribuições sociais obrigatórias sobre os mesmos rendimentos com vista à obtenção de uma pensão de reforma. Tudo isto reduz ao salário bruto, determinando o salário líquido que é aquilo que as pessoas veem. É desta forma que a maioria das pessoas sente na carteira o peso do IRS e da contribuição social obrigatória. Neste particular, a pensão de reforma constitui a ideia-mote que procura legitimar a cobrança coerciva das contribuições sociais. Mas na prática, as contribuições sociais, constituindo poupança forçada que fica à guarda do Estado até ao momento futuro em que dela se passa a poder dispor, são como impostos sobre o rendimento de hoje.

Ora, se as pensões de reforma são a contrapartida futura de tributos prestados no passado sobre uma determinada base de rendimentos do trabalho, a sujeição das pensões a IRS resulta numa dupla tributação da mesma base. Este efeito será tanto maior quanto menor for a relação entre o valor da pensão de reforma e as contribuições realizadas ao longo da carreira contributiva.

De resto, a própria expressão “rendimentos de pensões” é errónea e apenas surge no discurso oficial porque, baseado numa lógica de substituição de rendimentos do trabalho por pensões, o sistema é de repartição. Ou seja, neste sistema de repartição, as pensões dos reformados são pagas pelos trabalhadores no activo (e não pelos descontos realizados pelos próprios reformados, outrora activos, conforme sucede em sistemas de capitalização).

É precisamente na lógica de substituição de rendimentos do trabalho por rendimentos de pensões que assenta a ideia da tributação de pensões. Assume-se que o trabalho dos pensionistas consiste agora em estarem reformados, dando azo à aplicação de IRS através de taxas de retenção na fonte que vão até 40%. Todavia, nem a aposentação configura situação laboral nem a pensão de reforma constitui rendimento.

Na verdade, a aposentação configura o início da inactividade laboral e a pensão de reforma constitui um activo, ou um direito adquirido, que resulta de um conjunto de contribuições coercivamente retidas e rentabilizadas de alguma forma pelo Estado ao longo do tempo. Trata-se de uma distinção importante, porque, regressando à questão de princípio, a legitimidade política da obrigatoriedade de contribuição, reside na constituição da pensão, independentemente de o sistema ser de repartição ou de capitalização. Curiosamente, o sistema português é de repartição, mas as pessoas pensam nele como se fosse de capitalização. O inverno demográfico ditará o destino do nosso sistema.

Onde ficamos então na questão prática dos residentes não habituais? Por um lado, é evidente que o Governo está sob pressão da esquerda e de alguns governos estrangeiros para taxar os beneficiários da isenção sobre “rendimentos” de pensões estrangeiras. Por outro, também é evidente que as receitas de IRS associadas à categoria H (pensões) são substanciais, tendo representado em 2017 cerca de 28% do total de IRS liquidado em Portugal (dados da AT). A solução política mais cómoda consiste, pois, em continuar a taxar as pensões dos portugueses, mantendo o sistema de repartição que dá cobertura intelectual àquela tributação, e taxar tudo o que puder ser taxado do bolso dos residentes não habituais. Em 2020, estes levarão com uma taxa de IRS de 10%, mas o mais provável é que a taxa venha a aumentar nos próximos anos.

Na prática, ao acabar com a isenção total, e colocando aqueles pensionistas no radar da AT, ainda que sujeitos a uma taxa de IRS reduzida face às taxas de IRS dos seus países, o regime dos residentes não habituais nunca mais será o mesmo. Provavelmente morreu.

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