O espaço público morreu

Quem manda no espaço público são interesses privados que reagem a estímulos externos e não respondem a ninguém. São uma ameaça à democracia e à liberdade.

Donald Trump foi corrido do Twitter, do Facebook e do Reddit; ao mesmo tempo a Apple, a Google e a Amazon excluíram das suas plataformas aplicações e sites que promoviam a violência. Por momentos até pareceu que estas plataformas agiram de forma decisiva contra as mentiras e o discurso de ódio promovido por algumas personagens americanas. Mas o que esta ação esconde é que foram estas mesmas plataformas que promoveram durante anos esse mesmo ódio e criaram a situação que existe hoje.

Estas plataformas agem única e exclusivamente por causa dos lucros e em função das simpatias políticas – como o poder mudou nos EUA, a coragem destas plataformas cresceu subitamente para gerar mais simpatias junto dos novos poderes. Sem Facebook nem Twitter nem Youtube nem 4chan, não existiria um Donald Trump presidente e as guerras culturais não teriam o impacto que têm. O assalto ao Capitólio não teria existido, as conspirações sobre o Covid e 5G seriam reduzidas ao mínimo e movimentos como o QAnon teriam uma expressão irrelevante. A situação é grave e precisa de ser entendida de forma ampla. Vamos aos factos:

  • Neste momento a regulação efetiva do espaço público está nas mãos de plataformas sediadas nos Estados Unidos e detidas por interesses privados;
  • O poder dessas plataformas foi usado como o caminho mais curto para o retorno económico, através da criação de algoritmos que dão prioridade às emoções e ao extremismo, desprezando o rigor;
  • A consequência prática desse poder tem sido o aumento generalizado da desinformação, com efeitos gravíssimos ao nível da saúde pública, da democracia e dos direitos humanos;
  • A incompetência dos poderes públicos e dos média privados para lidar com o cenário resulta da ignorância geracional e do crónico atraso tecnológico de que ambos padecem;

Há quase uma década que a investigação académica revelou os primeiros sinais de perigo deste novo sistema, sem qualquer reação dos poderes públicos. Mesmo quando em 2016 as consequências sociais se tornaram claras, tudo continuou na mesma e estas plataformas continuaram a beneficiar de um estatuto de intocáveis.

Durante anos, uma estranha coligação de defensores do discurso livre e lobistas tecnológicos repetiram à exaustão que estas plataformas não deveriam ser reguladas. Ora aí está o resultado: hoje são essas mesmas plataformas que regulam o discurso público, sem que exista qualquer possibilidade de controlo democrático do mesmo. Ocupantes de cargos públicos são promovidos e silenciados de forma arbitrária, erguem-se barreiras tecnológicas que efetivamente bloqueiam vozes dissonantes e criam-se mecanismos arbitrários de regulação do conteúdo que é globalmente aceitável, sempre a partir da bolha de Silicon Valley.

Mesmo contabilizando todas as vantagens da internet que foram amplificadas pelas redes sociais, como a democratização do acesso ao espaço público e uma maior responsabilização dos ocupantes desse mesmo espaço, é difícil ver um saldo positivo na existência de redes como o Facebook ou o Youtube.

Os danos que provocaram ao longo dos últimos seis anos são simplesmente demasiado grandes para serem compensados pelo bem que, por arrasto, ajudaram a fazer. É preciso resolver este problema de forma urgente e não serão os processos abertos nos tribunais de Washington e Bruxelas ou regulações como o DSA que ajudarão a resolver o problema – nenhum deles deverá estar pronto antes de 2023 e não é simplesmente possível esperar tanto tempo.

A única forma de regular estas plataformas é impedir o seu crescimento económico desmesurado e é aí que a regulação se deve focar. Há quatro medidas que podem limitar estes poderes ocultos, melhorar o espaço público e reduzir a crescente desigualdade digital nas sociedades. Para que tenham efeitos, precisam de ser aplicadas com rapidez:

  • Pura e simplesmente proibir a publicidade preditiva e personalizada, dado o grau de condicionamento social que ela implica e o abuso de privacidade que tem promovido;
  • Condicionar de forma objetiva a publicidade digital, taxando-a de forma muito mais agressiva nas grandes plataformas sem propósito social (permitindo que os média e outras plataformas se tornem mais atraentes para anunciantes);
  • Impedir a concentração de poder destas mega-empresas, impedindo novas aquisiçóes de concorrentes;
  • Criar mecanismos de certificação de todos os algoritmos com implicações no espaço público, de forma a garantir que se minimizam os efeitos sociais dos mesmos.

Os Estados Unidos são hoje uma sociedade fraturada porque se perdeu o conjunto de crenças comuns e se criaram nichos onde conspirações propagam em roda livre. Na Europa ainda não estamos tão mal, mas podemos vir a estar – até porque aqui também o espaço público está à mercê destas empresas estrangeiras. Hoje são americanas mas, dado o estado de inércia legislativa, pouco impede que amanhã sejam russas ou chinesas. A inépcia dos poderes públicos tem efeitos dramáticos numa vida pública que já está suficientemente inquinada sem precisar de ajudas externas.

Ler mais: para entender a questão do espaço público de forma ampla, vale a pena ler o Democracy Hacked. O livro aborda as grandes questões que se relacionam com a ideia central da democracia ameaçada em tempos digitais e possíveis soluções para os problemas levantados.

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