O Estado no papel

O Estado tem de ser capaz de cumprir eficientemente o papel que lhe houvermos destinado. Mais que discutir quantos são, deveríamos estar a pensar quem queremos que sejam e como sejam.

Eu ia escrever sobre a proposta de reintroduzir o serviço militar obrigatório. No entanto, tive de ir à minha repartição de Finanças, por causa de um processo que faz Kafka parecer um menino de coro, e tirei a senha 45, quando ainda se ia na 22. Enquanto esperava, o monitor começou a passar as estatísticas do Sistema Integrado de Gestão de Atendimento (SIGA). Como felizmente havia saído de casa munida do portátil, pude escrever este artigo.

A sociedade portuguesa vive há uns tempos em clima de clivagem. Provavelmente seguindo a máxima de dividir para reinar, sucessivos governos têm fomentado a dissensão entre vários grupos da população, muito notavelmente entre público e privado. Por isso, a notícia desta semana sobre o aumento do número de funcionários das Administrações Públicas, depois de divulgada a Síntese Estatística do Emprego Público, gerou os expectáveis comentários de que temos excesso de trabalhadores no sector público.

Eu não sei se Portugal tem emprego público a mais, a menos ou na conta certa. Não sei porque isso dependerá sempre do Estado que colectiva e democraticamente se queira ter, do papel que desejemos para ele, das funções que achemos que deve cumprir e a que nível. A essa reflexão chama-se reforma do Estado.

Eu não sei se quem fica à espera de ser atendido num serviço público, se quem teve a sua viagem de comboio cancelada por causa do calor ou se os pais das crianças que fazem quimioterapia em corredores acham que há demasiado Estado. Mas tenho quase, quase a certeza de que querem melhor Estado. E que sentem que era possível fazer mais com os mesmos recursos, isto é, tornar o Estado mais eficiente. Eu, pelo menos, tenho essa percepção.

Durante os anos da troika, a necessidade severa de recuperar o acesso aos mercados financeiros não foi compatível com o debate ideológico em torno do papel do Estado. Eu percebo que estados de crise não criam o melhor ambiente para a discussão de questões metafísicas. Mas, num país que está sempre à espera que “o inglês veja”, teria sido uma excelente oportunidade para fazer a reforma da Administração Pública.

Ao invés, o que o inglês viu foi o Luís Gaspar, um economista cheio de capacidade (e de quem sou amiga, fica a declaração de interesses), conceber com grande sucesso o leilão no Reino Unido para a utilização da tecnologia 5G. O corte das gorduras transformou-se em perda de músculo.

Felizmente, o Luís Gaspar regressou a Portugal. Mas a reforma da Administração Pública continua por fazer. E ela é tão precisa quanto complicada. Implica que cada serviço faça um levantamento de recursos e de necessidades. Que perceba se as pessoas que integra dispõem das competências necessárias ao serviço e, em caso negativo, que aptidões podem adquirir que as tornem úteis ali ou noutra função. A pessoa que entrou para levar e buscar correio viu, na era do e-mail, a sua tarefa desaparecer, mas merece que a desafiem a fazer coisas novas, dando-lhe para isso novos conhecimentos e ferramentas.

Implica também estabelecer esquemas remuneratórios que promovam a produtividade e que permitam captar e reter os bons quadros. Ou seja, que corrijam o risco moral. Se, no sector privado, a teoria dos contratos já ofereceu a solução – pague-se em função dos resultados –, na actividade estatal, cujos objectivos são muitas vezes intangíveis e que tem especiais obrigações de transparência e de equidade, tal é de mais difícil implementação. Repensar o modelo de avaliação para que dê os incentivos certos é, pois, fundamental.

Independentemente do modelo que tenhamos em mente, o Estado tem de ser capaz de cumprir eficientemente o papel que lhe houvermos destinado. Mais que discutir quantos são, deveríamos estar a pensar quem queremos que sejam e como sejam. Não é apenas por o Luís Gaspar ser meu amigo que não o quero emigrado.

P.S. Eu gostaria de poder partilhar aqui os dados do SIGA – número de atendimentos efectuados no primeiro semestre de 2018, respectiva distribuição geográfica por distritos e tempos de espera médios –, mas eles aparentemente não estão disponíveis. Apenas encontrei o vídeo com os valores para 2016 e fui impedida de fotografar os números do primeiro semestre de 2018 que passavam no ecran.

Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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