O imperativo da biocircularidade e da humanização da moda

  • João Wengorovius Meneses
  • 6 Outubro 2023

a moda enfrenta hoje um dos seus maiores desafios. Tal como o capitalismo, a sua licença para operar dependerá, cada vez mais, da sua capacidade para se tornar sustentável.

Talvez nenhuma outra indústria espelhe tão bem a evolução do capitalismo como a moda. Na sua promessa de felicidade, na sua rápida democratização e crescimento desmesurado, na sua tendência para o excesso e o descarte, e nos seus impactos sociais e ecológicos, tem sido um dos seus principais veículos e um dos seus amplificadores. A moda, diz Lipovetsy, governa as nossas sociedades porque “a sedução e o efémero se transformaram, em menos de meio século, nos princípios organizadores da vida coletiva”, contribuindo para uma espécie de “embrutecimento generalizado” e para “a derrocada do cidadão livre e responsável”.

Hoje, longe de se cingir às tradicionais fashion weeks, a moda desmultiplica-se pelo mundo fora em pré-coleções, coleções resort e coleções-cápsula, que se apresentam em streaming e vídeos de autor, em happenings arty e lojas pop-up, pulverizando o seu poder sedutor através de colaborações com criativos, marcas e figuras públicas. Mais do que fast fashion, assiste-se hoje a uma espécie de flash fashion. Compram-se cada vez mais peças, que são usadas cada vez menos vezes e mais rapidamente descartadas. Veja-se a chinesa Shein que, em 2022, lançou, por dia, entre 700 e 1000 novas peças no seu site, muitas das quais à venda por cinco dólares ou mesmo por um dólar. Também a Pretty Little Thing, a Boohoo e a Fashion Nova seguem o mesmo modelo. Em que condições são feitas essas peças, qual o seu verdadeiro custo e que durabilidade terão, ninguém sabe.

É neste contexto que a moda enfrenta hoje um dos seus maiores desafios. Tal como o capitalismo, a sua licença para operar dependerá, cada vez mais, da sua capacidade para se tornar sustentável. Para tal, terá de repensar o seu propósito e de ser capaz de criar valor social e ambiental, isto é, para as pessoas e o planeta. Este novo paradigma apela a uma profunda mudança de atitudes e mentalidades, bem como a doses massivas de inovação. Não será fácil desacelerar, aceitar que “menos é mais” e que “small is beautiful”, nem redesenhar as cadeias de valor atuais.

Mas não temos outra alternativa. Num planeta com recursos finitos e equilíbrios frágeis, é um absurdo fazer de conta do contrário, cultivando, irrigando, abatendo, colhendo, fiando, tingindo, transportando e vendendo como se não houvesse amanhã – e, no fim, atirar 75% das peças diretamente para aterro. Há quem se refira a este modelo de negócio como obsolescência programada, na realidade é obscenidade programada.

Tornar a moda sustentável, implica reduzir a escala de produção e consumo atuais e converter as cadeias de valor – extrativas e lineares –, em cadeias de valor biocirculares. Essa transição para a biocircularidade envolve inovações ao nível do design, dos materiais, do processo produtivo, do fim de vida das peças, do seu transporte, das suas embalagens, entre outras.

O novo tipo de capitalismo a emergir, impulsionado por novas expetativas e exigências, será muito diferente do que dominou o século passado. Por um lado, as novas gerações de clientes, investidores e trabalhadores têm cada vez mais o desejo de fazer das suas opções de consumo, investimento e trabalho atos de cidadania, isto é, com impactos positivos nas pessoas e no planeta. Por outro, a regulação será cada vez mais exigente, sobretudo na Europa.

Num futuro próximo, a indústria da moda será chamada a tornar as suas cadeias de valor transparentes, isto é, a partilhar os seus impactos sociais e ambientais, desde logo, nas etiquetas das peças. Terá, também, de dar garantias de que valoriza devidamente as pessoas e o planeta, através de validações por terceiras partes – o que se poderá traduzir em certificações e auditorias obrigatórias. Terá de reconhecer e pagar a sua pegada ecológica – por exemplo, as emissões de gases com efeito de estufa. E, por último, terá de passar a reportar também temas ambientais, sociais e de governance nos seus relatórios e contas anuais.

Se olharmos para Portugal, 18% das empresas transformadoras são têxteis e estas contribuem para 7% do PIB. Em 2022, o BCSD Portugal juntou-se ao programa be@t textiles, o qual, liderado pelo Centro Tecnológico do Têxtil e Vestuário, e cofinanciado pelo PRR, irá investir 138 milhões de euros no apoio à transição do setor têxtil e do vestuário português para o paradigma da bioeconomia. Os primeiros resultados do programa serão mostrados a partir do dia 6 de outubro, integrado na Fashion Week da ModaLisboa, que se realiza de 5 a 8.

  • João Wengorovius Meneses
  • Secretário Geral do BCSD Portugal

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