O óbvio é muito subjectivo

Felizmente os testes serológicos que começam a dar resultados, imperfeitos, parcelares e incertos irão fazer-nos sair do que cada um de nós acha óbvio em relação à epidemia.

“A new scientific truth does not triumph by convincing its opponents and making them see the light, but rather because its opponents eventually die, and a new generation grows up that is familiar with it.” Max Planck

Apesar de toda a incerteza, tudo na covid é óbvio. O único problema é o óbvio ser muito subjectivo. As infecções existem desde sempre. E evoluem naturalmente de uma determinada forma, que depende do tipo de vírus.

As curvas de infecções pulmonares estão estudadas, são deste tipo porque têm um crescimento inicial explosivo (quando não existem imunidades) mas como os vírus têm de passar algum tempo em meio hostil (ao contrário que acontece com a varíola ou a varicela, que se transmitem por contacto directo e através da pele), a infecção é muito sensível à continuidade das cadeias de contágio.

Ora, como a infecção tem uma dispersão rápida nas bolhas sociais dos infectados, mas mais lenta na passagem de umas bolhas sociais para outras, o número de potenciais hospedeiros cai rapidamente porque os infectados vão fazendo barreira à dispersão, à medida que ganham imunidade.

Rapidamente a infecção não tem por onde crescer, chega ao seu pico, e depois começa a baixar. Esta é a evolução natural.

O que este surto parece demonstrar é que a própria infecção é mais rápida do que nós a cortar as cadeias de contágio, o que pode significar que quando adoptámos medidas, já a infecção tinha provocado o efeito que pretendíamos e elas são largamente ineficazes.

Esta síntese que me fiz para me orientar na compreensão da evolução da epidemia, é apenas um conjunto de coisas óbvias para mim, sem ponta de originalidade em lado nenhum. Pelo contrário, um dos meus amigos acha esta síntese absurda, acha que uma epidemia não é um organismo vivo, que os veículos da infecção somos nós e, para esse meu amigo, é óbvio que se não bloquearmos os contactos sociais, a epidemia lavrará livremente, deixando atrás de si um rasto insuportável de mortos.

Já para Didier Darcet, um financeiro a olhar para os números da evolução da covid nos diferentes países, num pequeno artigo chamado “Timing the peaks”, as conclusões óbvias para o facto das curvas de evolução da epidemia serem quase todas iguais em todos os países são que:

  1. A difusão da epidemia é controlada pelo vírus, não por nós;
  2. As políticas adoptadas, na sua grande variedade, não parecem ter grande eficácia.

Para a generalidade da opinião pública e para a maioria dos decisores públicos, pelo contrário, é óbvio que só podemos derrotar o vírus se todos nos barricarmos em casa e evitarmos todos os contactos sociais, pelo tempo que for preciso.

Para os engraxadores de sapatos, para as cabeleireiras, para os vendedores de feira, para as senhoras da praça, para as prostitutas, para os carteiristas, para as senhoras da limpeza, para os condutores de tuk-tuk, para os artistas, para os empregados de café, para os amoladores de facas e muitos, muitos outros para quem a entrada de dinheiro todos os dias é a única garantia que têm de conseguir pagar as suas contas, para esses é óbvio que não é possível andar a fazer confinamentos cegos por tempo indeterminado.

Para Gabriela Gomes, investigadora que tendo desenhado um modelo com três curvas para a epidemiologia, uma sem medidas, outra com medidas de mitigação em que os contactos das pessoas se reduzem em 40% e outra com medidas de mitigação que reduzem esse contacto a 75%, e verificando que a curva da realidade se ajusta a este último cenário, é óbvio concluir que em Portugal os contactos foram reduzidos em 75%.

Para mim é óbvio que há outra conclusão possível: as cadeias de contágio estão a ser rompidas ao ritmo previsto no modelo, mas não pela redução de contactos sociais mas pela evolução da epidemia que vai reduzindo os hospedeiros potenciais rapidamente. Nenhum dos vários estudos de mobilidade permite dizer que os contactos sociais em Portugal foram reduzidos em 75%, muito menos no tempo necessário para que influenciassem o comportamento da curva como previsto, tanto mais que o pico dos contágio deve ter ocorrido a meio de Março, antes das principais medidas de contenção.

Para uma boa parte da opinião pública e da imprensa, é óbvio nunca se viu nada assim, com sobrecarga dos hospitais e das morgues com a mortalidade desta doença.

Para mim, é óbvio que se ao fim de um mês de epidemia em Portugal se contabilizam cerca de setecentos mortos, e na primeira semana de Janeiro 2017 se contabilizaram cerca de três mil e quinhentos mortos no total, dos quais cerca de mil atribuído ao surto de gripe dessa altura, é preciso olhar para outras razões para explicar a sobrecarga dos serviços de saúde e morgues.

Para grande parte dos profissionais de saúde, é óbvio que qualquer comparação da covid com a gripe não faz o menor sentido porque são doenças muito diferentes, com abordagens e evoluções clínicas substancialmente diferentes.

Para mim, é óbvio que a discussão clínica de duas doenças muito diferentes é uma coisa, e a discussão epidemiológica dessas doenças é outra coisa: a primeira discussão é uma questão médica, a enfrentar através da organização dos serviços de saúde e do trabalho dos profissionais de saúde, a segunda é uma questão social em que é preciso pesar cada decisão pelo seu impacto social no curto, médio e longo prazo.

Para a generalidade das pessoas, é óbvio que as medidas de confinamento que foram aplicadas são as recomendações da Organização Mundial de Saúde.

Para os documentos da Organização Mundial de Saúde não é nada óbvio o benefício de muitas destas medidas de confinamento social, em especial o fecho de escolas, medida que a OMS nunca recomendou, admite-a depois de pesados todas as vantagens e desvantagens associadas, que são muitas e complexas.

Para uma boa parte da opinião pública, é óbvio que a mortalidade e intensidade da epidemia num determinado país depende do rigor de confinamento adoptado, em especial garantindo-o o mais cedo possível. Para responsáveis políticos espanhóis e portugueses, é óbvio que quanto mais rigorosos formos no respeito pelo confinamento, mais cedo nos libertamos do confinamento.

Para toda a comunidade científica, é óbvio que não é isso que está em causa com o confinamento, mas apenas o eventual abaixamento do pico da epidemia, com a consequência do seu prolongamento no tempo, ou dito em estrangeiro: “NPIs alone are unlikely to prevent or contain a pandemic, as they do not affect susceptibility to, or infectivity from, viral infection. It is for this reason that, if NPIs are discontinued prematurely, infection may quickly return to its normal transmission patterns, leaving the ultimate impact of the outbreak unchanged. However, if implemented properly, NPIs have the potential to delay and flatten pandemic peaks in a way that reduces mortality and alleviates stress on the health care system”.

Durante milhares de anos era óbvio que era o Sol que andava à volta da terra, para Copérnico e Galileu, e hoje para quase todos nós, era óbvio que não era assim.

Felizmente os testes serológicos que começam a dar resultados, imperfeitos, parcelares e incertos irão fazer-nos sair do que cada um de nós acha óbvio em relação à epidemia e, provavelmente, repor a racionalidade e o medo nos papéis que lhes cabem na sociedade, porque é óbvio que as decisões tomadas em função do medo tendem a ser irracionais, caras e ineficientes.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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