O país onde as obras cumprem os prazos e os funcionários públicos podem ser despedidos

Na Dinamarca, os atrasos (com origem no mau planeamento) são inferiores aos que observamos no sul da Europa, onde o otimismo acaba por atropelar a nossa capacidade de planeamento.

Conta-se que um dia Fernando Pessoa chegou atrasado a um encontro com o escritor José Régio e que, em vez de assumir a culpa pelo atraso, terá dito que era Álvaro de Campos e, pedindo imensa desculpa, acrescentou que infelizmente o Fernando (Pessoa) não poderia comparecer.

Lembrei-me de Pessoa, e da maneira como ultrapassou o seu atraso no encontro com Régio, a propósito da reedição em dinamarquês do “Livro do Desassossego”, e do interessante evento de lançamento organizado pela Embaixada Portuguesa em Copenhaga, e que teve casa cheia, principalmente de dinamarqueses ávidos por saber mais sobre a sua vida e obra.

Em Copenhaga tenho o prazer diário de trabalhar num edifício que é uma premiada peça de arquitetura (que a Lego brindou com uma réplica). Terminado em 2005, o edifício tem um luminoso átrio central com um pavimento negro muito bonito, principalmente quando observado dos pisos superiores.

Um dia, um colega contou-me a história daquele pavimento: “Quando terminámos a construção do edifício, constatámos que nos sobrou dinheiro e, como ainda tínhamos algum tempo até à data prevista para a inauguração, decidimos encomendar um chão diferente a um artista. O artista criou esta representação do mar gelado do ártico, mas “em negativo” – em que as pedras pretas de tamanhos irregulares simbolizam o gelo, rodeadas de estreitas juntas de cimento cinzento claro, o que dá este efeito quando observado dos pisos superiores do átrio central…” E continuou a dissertar sobre alguns detalhes curiosos sobre o edifício, sem que eu o acompanhasse. Eu tinha ficado preso lá atrás na obra que tinha sido terminada antes do prazo e abaixo do custo original. Não parecia plausível que tal pudesse acontecer.

Voltei a lembrar-me desta conversa a propósito das notícias sobre o Estádio Municipal de Braga construído para o Euro 2004, quando ouvi o autarca Ricardo Rio explicar que a obra estava originalmente orçamentada em 65 milhões de euros, mas os gastos já eram superiores a 165 milhões, e (passados 15 anos) a fatura pode ainda continuar a aumentar. Este é um de milhares de exemplos que podemos encontrar no nosso Portugal, onde até imortalizámos a expressão “Obras de Santa Engrácia”, inspirada na igreja de Santa Engrácia (Panteão Nacional) que começou a ser construída em 1568 para receber o relicário da Santa e só foi terminada quase 400 anos mais tarde por ordem de Salazar.

Naturalmente esta incapacidade de planeamento não é exclusivamente portuguesa. Em grande medida é universal, mas presente em diferentes geografias de formas variadas e com diferentes intensidades. A Dinamarca também tem as suas “Santa Engrácias”, como as obras da linha do metro de Copenhaga que deveria ter aberto em Dezembro de 2018 ou o túnel Fehmarn Belt entre a Alemanha e Dinamarca, a maior infraestrutura alguma vez construída naquele país. Mas a capacidade de planeamento dos dinamarqueses é notável. Desde logo no plano pessoal, eles têm as suas vidas planeadas com grande detalhe com anos de antecedência, fazem marcações para tudo, muito para além do que nós portugueses acharíamos razoável.

Os atrasos (com origem no mau planeamento) são inferiores aos que observamos no sul da europa, onde o otimismo acaba por atropelar a nossa capacidade de planeamento. Depois a nossa criatividade “algo Pessoana” ajuda-nos a encontrar as mais mirabolantes justificações para o sucedido, das grandes às pequenas obras. Quem já não ouviu o construtor civil explicar-nos que o 5º adiamento da data de conclusão (e o respetivo aumento do custo), não era sua culpa, mas do canalizador, do pintor, ou do ladrilhador ou doutro qualquer “pseudónimo” porque na realidade é o próprio, ou alguém sob a sua responsabilidade, que realiza todas tais tarefas.

Mas a conversa sobre o pavimento do edifício, antecedeu outra ainda mais especial: a primeira reunião com o presidente do “sindicato” de professores da minha escola! Talvez por nunca antes ter sido funcionário publico, nem pertencido a um sindicato, estranhei a convocatória para uma reunião desta natureza com o seu presidente. Quando vi o nome do presidente do sindicato que assinava a convocatória, percebi que a minha desconfiança era injustificada.

Aquele “sindicalista” (um prestigiado académico de renome mundial, com um h-index de 40, e mais de 20,000 citações no Google Scholar) é quase a antítese da imagem que tinha de um sindicalista. O objetivo da reunião foi dar as boas-vindas aos novos professores e explicar as regras do jogo: ao contrário doutros países, na Dinamarca um funcionário público, incluindo professor séniores no topo da carreira, podem ser despedidos, se os níveis de desempenho forem consistentemente abaixo do esperado.

Para exemplificar, foi discutido o caso de um académico despedido 2 anos antes. Apesar de raros, os despedimentos existem mesmo e o simples facto de ser verbalizado com naturalidade e publicamente, representa uma diferença fundamental da prática da gestão da função pública. No sistema público dinamarquês existem avaliações de desempenho anuais (as impronunciáveis “medarbejderudviklingsamtale” ou entrevistas de avaliação) que são levadas a sério e tem um impacto real no desempenho e nos prémios de reconhecimento. Em grande medida, isto ajuda a explicar as diferenças de desempenho entre as funções públicas de vários países, bem como a satisfação da população com os serviços públicos (e até com a vida em geral) que nos países nórdicos tende a estar entre as mais altas do mundo.

Como dizia Pessoa, “sendo nós portugueses, convém saber o que é que somos” e, no que respeita à gestão da coisa pública ou à responsabilização dos servidores públicos, temos métodos muito diferentes e talvez pudéssemos aprender algo com os congéneres nórdicos.

E claro que o profissionalismo dos funcionários do estado tem várias facetas. Veja-se a forma determinada como os militares dinamarqueses defendem a minúscula ilha Hans, um rochedo inabitado com cerca de 1,3 km2 que é disputado também pelo Canadá: quando os militares canadianos visitam a ilha deixam uma garrafa de whisky para os rivais, ao que os dinamarqueses retribuem deixando “schnapps” (as suas poderosas aguardentes)!

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