O surreal campeonato do despesismo

O que critico nas cativações não são as que o governo fez no ano passado. O meu maior lamento é que os socialistas não as tenham usado com a mesma intensidade e empenho há uma década.

O debate sobre as cativações orçamentais é só mais uma peça do surrealismo em que está transformada a política portuguesa. Temos o Governo a ser acusado pela oposição e pela extrema-esquerda que o apoia de ter poupado dinheiro dos contribuintes e de não ter gasto tanto quanto tinha anunciado. Os socialistas respondem dizendo que gastaram mais do que o Governo anterior e que quando se trata de fazer despesa não aceitam lições de ninguém. E isso podemos todos confirmar.

É esta completa inversão de lógica que domina o debate e a avaliação da política orçamental em Portugal. Os bons e admirados são os delinquentes financeiros que gastam sem critério, sem avaliação de racionalidade, sem cuidarem das consequências nefastas que daí resultem. Os outros, poucos, são por regra gente sem visão, “botas-de-elástico”, perigosos liberais que querem dar cabo do Estado.

Não se vê ninguém interessado em perceber ou avaliar se o dinheiro que deixou de se gastar foi bem poupado ou se, pelo contrário, se cortou em serviços ou fornecimentos que eram importantes. Não se distingue entre a troca de carros de um gabinete ministerial ou a substituição de um equipamento hospitalar essencial. Ou entre mais um estudo encomendado a uma consultora que há-de ir parar a uma gaveta e as obras numa esquadra de polícia que esteja a cair de podre.

Nesta permanente corrida para a desgraça, o que é valorizado é o número absoluto. “Só gastaste 80 mil milhões? És um péssimo político. Nós conseguimos gastar 85 mil milhões”.

Sem olhar para a racionalidade e qualidade da despesa também não se consegue chegar ao debate que verdadeiramente interessa, que é o das opções políticas alternativas com os mesmos meios.

O que teria sido mais benéfico para o país? Dar um subsidio de 175 milhões de euros aos empresários da restauração com a descida do IVA do sector para 13%, ou pegar nesse montante e gastá-lo em áreas sujeitas a cativações? Aumentar a despesa em dezenas de milhões de euros com a redução do horário de trabalho para as 35 horas semanais ou investir esse montante em projectos essenciais e com retorno económico e social? Só o saberíamos se conhecêssemos de forma detalhada o que deixou de se fazer com as cativações e com o corte no investimento.

Como princípio de gestão orçamental, o que critico nas cativações não são as que o Governo fez no ano passado. O meu maior lamento é que os socialistas não as tenham usado com a mesma intensidade e empenho há uma década. Talvez tivessem evitado enterrar o país no pântano da dívida e, depois, no resgate, como fizeram. Se aprenderam de então para cá? A avaliar pelo discurso, tenho sérias dúvidas. A despesa pública é uma droga difícil de largar.

O que os cortes de quase mil milhões de despesa orçamentada feitos em 2016 revelam é que o Orçamento do Estado feito pelo Governo e aprovado pelo Parlamento era irresponsável e irrealista.

O próprio Governo deu conta disso e foi compensando, ao longo do ano, com redobrado cuidado na execução. O investimento foi reduzido à sua mais básica insignificância e a despesa orçamentada mas não descativada vale cerca de 0,5 pontos percentuais do PIB.

Para já, os mil milhões de cativações definitivas são menos défice e menos dívida no mesmo montante. Com sorte, a despesa efectiva que foi poupada teve até reflexo no orçamento deste ano, uma vez que os departamentos do Estado mantêm a estúpida prática de exercícios orçamentais incrementais de ano para ano: pegam no valor da despesa do ano em curso e aplicam uma taxa de crescimento para calcularem a verba a reclamar para o ano seguinte, sem cuidarem da racionalidade e necessidade dessas despesas. Por isso, nos últimos meses do ano assiste-se a uma corrida às despesas.

Ainda que não seja necessário, os chefes de departamento fazem questão de esgotar o Orçamento, temendo que qualquer poupança possa levar a um corte no Orçamento do ano seguinte. Este sistema que premeia o despesismo e penaliza a poupança está enraizado na cultura do Estado e, como se vê, vem de cima: Governo bom é Governo que gasta muito, mais do que o anterior.

Havendo golpada nas cativações ela não é, por isso, económica ou orçamental. Ela é política e os enganados são, antes de mais, os parceiros do Governo. O Bloco de Esquerda e o PCP é que foram levados pelo Governo a aprovar um Orçamento que foi sendo ajustado ao longo do ano nas rubricas da despesa, sagradas para aqueles partidos. É uma questão que têm de resolver entre eles.

O resto é uma questão de propaganda e de fervor clubista. Há quem prefira o aperto na despesa assumido logo à cabeça nos Orçamentos que os deputados aprovam e quem considere que o método discreto e não assumido das cativações é melhor. Há gente para tudo.

PS. O país perdeu Henrique Medina Carreira, uma das vozes mais lúcidas, conhecedoras e independentes que tivemos nas últimas décadas. Teve sempre razão antes do tempo, essa coisa insuportável para os espíritos mesquinhos que gostam de arrumar assuntos complexos com as preguiçosas etiquetas da praxe. Das centenas de citações possíveis, deixo apenas uma: “Sobre as nossas principais forças e personalidades políticas pesa hoje uma imensa responsabilidade: ou reformam depressa, com muito rigor e bem; ou deixarão Portugal sujeito a um novo colapso social e político”. Medina Carreira escreveu isto em Dezembro de 2003 e explicou porquê. Agora já todos percebemos o que ele queria dizer-nos.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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