O voto eletrónico está morto

Depois do demolidor relatório da Proteção de Dados, uma experiência de voto eletrónico em Portugal não se deve repetir tão cedo.

Decorreu em Évora, por altura das eleições europeias de 2019, um ensaio de voto eletrónico que foi considerado um sucesso pelo Ministério da Administração Interna (MAI). O relatório produzido dois meses depois do voto só viu vantagens e considerou serem necessárias muito poucas melhorias para o alargamento do sistema. Mas esta não foi a única avaliação feita ao teste de voto eletrónico: há três semanas a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) publicou finalmente a sua avaliação, e nele é efetuada uma demolição metódica do exercício.

Convém começar por dizer que este relatório da CNPD aparece vinte e dois meses depois da realização das eleições, o que é absolutamente ridículo e não pode ser explicado pelo Covid-19 – o primeiro confinamento ocorreu dez meses depois do ato eleitoral, altura em que o relatório devia estar mais do que pronto. Assim, a CNPD é risível e não merece o que custa.

Mas voltemos ao essencial: um relatório contradiz frontalmente o outro. Por exemplo, onde o MAI viu um controlo efetivo com os equipamentos de votação “devidamente selados pelas mesas, bem como as urnas que continham os comprovativos de voto, e transportados pelas forças de segurança para o Comando Distrital da Polícia de Segurança Pública onde ficaram à sua guarda”, a CNPD encontrou ficheiros PDF enfiados em pen-drives sem quaisquer “medidas de segurança que prevenissem o acesso indevido ao seu conteúdo” nem “qualquer medida de proteção, física ou lógica, que garantisse a confidencialidade e integridade da informação”.

Para além disso, as máquinas de voto foram protegidas apenas com um autocolante, o que poderia permitir “o acesso ao interior das componentes, sem indícios visíveis dessa violação”, para além de que a a CNPD “detetou máquinas sem selo ou com selo rasgado”. Pior ainda, a análise do sistema operativo das máquinas de voto conclui que existiram ficheiros acedidos e alterados em “datas posteriores ao sufrágio”. E, apesar de o Ministério garantir que “o sistema não guardou nenhuma informação relativa ao eleitor”, a CNPD demonstrou que o a informação de todos os eleitores que exerceu o direito de voto ficou registada numa tabela, para além de ser acessível em tempo real a um sistema administrativo na dependência direta de um ministério.

Como não é possível que ambos tenham razão, é urgente perceber o que se passou aqui. É o MAI que é incompetente para avaliar com rigor as questões de segurança ou é a CNPD que sofre de excesso de zelo e isso a levou a exagerar as suas conclusões? O mais provável é que nunca venhamos a saber, porque nestes casos a culpa costuma morrer solteira e o cidadão acaba por permanecer na ignorância. Mas interessa recordar que foram envolvidos 210 técnicos no local, equipas de gestão em Évora e em Lisboa, e 140 viaturas, 400 máquinas de voto mais computadores portáteis e routers, apoio telefónico, etc.

Foi ainda efetuada formação específica aos membros da mesa de voto e conduzidos três dias de testes extensos, para além da auditoria conduzida pela Universidade do Minho. Tendo em conta a dimensão logística e a conclusão retirada pela CNPD, é fácil concluir que um processo de voto eletrónico bem-sucedido está ainda longe de acontecer em Portugal. É pena que se tenha perdido mais uma oportunidade.

E isto não é nada que não se faça com regularidade em outros locais da União Europeia. É verdade que a experiência da Estónia é admirável e que há muito a aprender lá. É também verdade que o esquema de identidade digital que está a ser preparado a nível da União Europeia poderá ajudar a desbloquear alguns problemas a nível da identificação pessoal do cidadão, bem como do acesso a serviços públicos. Mas a forma como se olha para o voto é tão conservadora que não será de um momento para o outro que se vão adotar soluções radicais. Até porque, com esta experiência confirmou, as pessoas que intervêm no sistema não têm qualificação para entender como respeitar as suas necessidades.

Podemos, ao menos, começar pelo básico: o voto por correio, que também é uma tecnologia. Tem a vantagem de ser segura, controlada e verificável, para além de já não requerer curva de aprendizagem por parte do eleitorado nem dos eleitores. E se a pandemia mostrou alguma coisa, foi que há razões de segurança que justificam o alargamento desta opção. E isso implicará também terminar com a idiotice constitucional que impede o voto por correspondência aos emigrantes. Da mesma forma, o voto em mobilidade tem de ser alargado a estes votantes, que não podem permanecer como cidadãos de segunda.

A tecnologia pode também, desde já, ser usada para garantir soluções exequíveis que passem por facilitar o acesso ao voto informado, o que também é uma ferramenta para combater populismos. Facilitar o acesso à informação é ajudar a clarificar o sentido de voto. E isso implica uma atitude pró-ativa no combate à desinformação, no castigo a plataformas que a promovem e na promoção da informação de qualidade. A tecnologia pode ajudar um eleito a saber o que pensa a sua base eleitoral sobre os temas em discussão, antes de tomar decisões sobre eles; e pode permitir ao eleitor saber como votou o seu candidato ao longo dos anos. A própria Assembleia da República, bem como as assembleias das autarquias, têm um longo caminho a percorrer neste sentido: hoje é difícil e/ou impossível saber como votam e o que pensam os eleitos, o que não ajuda a criar a transparência no sistema. E era preferível ver estas exigências de transparência consagradas nas leis eleitorais do que recusar o voto por correspondência a uma parte dos eleitores.

Todas estas mudanças exigem um sistema mais eficiente e também implicam eleitores mais responsáveis. A democracia portuguesa necessita de ambos.

Ler mais: Há um ano, o Research Service do Parlamento Europeu publicou um documento muito interessante sobre o uso de tecnologia para ajudar na co-criação de políticas europeias. É uma leitura que poderá ajudar a ver a intervenção da tecnologia na democracia para além do voto.

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