Os efeitos secundários da pandemia

As liberdades civis são uma das maiores vítimas do coronavirus. E agora são os próprios telemóveis a ser usados contra os nossos direitos.

Na Coreia do Sul, na Polónia, em Taiwan e em Israel estão a ser usadas diversas aplicações que põem em causa a liberdade individual dos cidadãos. Alemanha, França e a própria UE estão a pensar lançar aplicações mais ou menos semelhantes. E a Google e a Apple acabaram de anunciar uma cooperação para aumentar a a erosão da privacidade.

Neste momento, existem genericamente dois tipos de aplicações dos dados pessoais no combate ao coronavirus. A primeira recolhe dados da movimentação dos aparelhos de forma a reconhecer movimentações de grupo. Esta utilização é semelhante à que permite conhecer os padrões de trânsito nas grandes cidades, facilitando a locomoção – e é em princípio anonimizada.

A outra opção ficou conhecida como “contact tracing” e implica a utilização de dados pessoais – permitindo a ligação entre telefones próximos e a partilha de informações entre eles e também entre os aparelhos e uma entidade central.

O anúncio da Google e da Apple de que estão a colaborar para a criação de uma aplicação de “contact tracing” é por isso bastante preocupante e não deve ser olhada de forma inocente. É mais uma forma de perpetuar o poder das grandes empresas tecnológicas e de entregar a gestão das sociedades a esta visão tecnocrata e mecanicista – que no limite nega o humanismo e reforça o determinismo tecnológico.

Mas nada disto acontece por acaso e o perigo aqui é imenso. Desde logo, porque se está a criar uma máquina que não é passível de ser desligada com facilidade. E este é o seu modelo de negócio preferencial: Elas precisam destes atos de erosão de privacidade para continuarem vivas, porque vivem da venda de dados individuais. Na maioria dos casos, a venda de dados é feita para efeitos publicitários, mas não seria a primeira vez que se vendiam os dados pessoais a seguradoras e entidades de segurança que abusam deles para limitar as liberdades e os direitos civis. Não é pouca coisa.

Do lado dos governos, a tentação também é imensa. Já se está a ver como o coronavirus está a servir para limitar a liberdade de democracias tradicionais (a Hungria e a Polónia, em graus diferentes, são ótimos exemplos). Poucos analistas têm dúvidas que o governo israelita vá usar estas aplicações para as suas manobras de segurança, ameaçando ainda mais a democracia vigente.

É fundamental encontrar pontos de equilíbrio. A tecnologia deve, sim, ajudar no controlo desta pandemia – mas sem colocar em causa as liberdades civis e garantindo mecanismos de controlo e o fim do seu uso assim que a situação esteja controlada. Mais: qualquer solução ampla deve necessariamente ser feita em open-source, para que o código possa ser validado por especialistas independentes. E deve também ser verificada por alguma comissão independente de verdadeiros especialistas que controlem os processos e não façam apenas figura de corpo presente.

Muitos governos europeus, que estão assentes em democracias civilizadas, mostram uma total impreparação para tomar estas decisões. E o debate sobre os direitos digitais fundamentais está por fazer. Resta esperar que as liberdades civis não fiquem irremediavelmente feridas por causa do Covid’19.

Ler mais: As cidades inteligentes da China são o cenário distópico com que nos confrontamos no imediato. Ali o Big Brother é vermelho e serve apenas para manter o poder centralizado da ditadura de Pequim, tal como se explica bem neste We Have been Harmonised, publicado no ano passado. É um relato assustador da forma como a China é hoje, efetivamente, uma ciberditadura.

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