Os erros do IUC

O agravamento da tributação do IUC tem quatro problemas principais e evidencia um enorme nervosismo no Governo e no PS.

Na proposta de Orçamento do Estado para 2024 (OE24), o Governo agrava fortemente a tributação do IUC (Imposto Único de Circulação) para as viaturas com matrícula anterior a 2007. O IUC aboliu o imposto municipal sobre veículos, o imposto de circulação e o imposto de camionagem (estes três eram popularmente apelidados de “imposto de selo automóvel”). A tributação do IUC dividiu os automóveis em duas categorias: a Categoria A aplicava-se às viaturas com matrícula até à entrada em vigor do imposto (1 de julho de 2007) e a Categoria B às viaturas com matrícula posterior a essa data.

As viaturas de Categoria A são tributadas de acordo com a cilindrada, a voltagem, a antiguidade da matrícula e o combustível, sendo que as de Categoria B são tributadas de acordo com a cilindrada e o nível de emissão de dióxido de carbono (CO2) – artº 7 do Código do IUC, Lei n.º 22-A/2007, 29/06. As taxas também são diferentes, de acordo com o artº 9 e 10 do referido Código.

Com o OE24, os veículos de Categoria A passem a pagar imposto com as mesmas regras dos de Categoria B. Diz o governo que se corrige uma injustiça. Mas será mesmo assim?

Esta alteração do IUC tem quatro problemas principais.

  1. O primeiro é a forte regressividade. A maioria dos veículos com matrícula anterior a 2007 (ou seja, com 17 ou mais anos), têm um baixo valor económico. Embora não existam dados nem estudos, não é difícil de antecipar que quem detém um automóvel com 17 ou mais anos o fará, sobretudo, por insuficiência económica. Isto é, até pode haver situações em que a pessoa mantém um carro por motivos de coleção ou nostalgia, embora o IUC apenas abranja viaturas desde 1981 – pelo que os ditos “automóveis clássicos” estarão, na sua grande maioria, isentos. Mas a grande maioria das pessoas que em 2024 possui uma viatura cuja origem é de entre 1981 e 2007 (portanto, entre 17 e 43 anos) será por razões de baixos rendimentos. Ao tributar mais estas viaturas, o governo penaliza sobretudo os mais pobres, incluindo muitos pensionistas. Como disse a Margarida Balseiro Lopes, estamos a “tributar a pobreza” (https://www.jn.pt/3243687154/tributar-a-pobreza/).
  2. O segundo, é o da proporcionalidade. Ao fazer aumentos que podem superar os 500%, o efeito fiscal fere este princípio. Além disso, em alguns casos, o valor do imposto não andará longe do valor comercial da viatura. É verdade que no OE24 há um “travão” de aumento de 25 euros. Ainda assim, este travão tem dois problemas. O primeiro é que em alguns casos não deixará de ser um aumento significativo do imposto em termos percentuais. Nos exemplos que o ECO publicou (disponível no link atrás), uma carrinha que pagava 22,48€ não passa logo para os 156,82€, mas passará para 47,48€ em 2023, ainda assim um aumento de 110% num ano. O segundo é que o governo não garante que o travão se manterá em anos futuros. Adicionalmente, as viaturas anteriores a julho de 2007 pagaram bastante mais imposto automóvel (IA) que os matriculados depois dessa data (entretanto revogado pelo Imposto sobre os Veículos nessa altura). Ou seja, quando em julho de 2007 se reformou a tributação automóvel, a compra de viaturas novas passou a pagar menos imposto.
  3. O terceiro erro é de política económica. O objetivo até pode ser ambiental, mas faz pouco sentido do ponto de vista económico. Primeiro, porque as viaturas que já existem não poluem por si só. Uma viatura só polui quando é fabricada e depois quando é utilizada. Uma viatura antiga que esteja parada não tem qualquer efeito poluente. Segundo, se o objetivo é penalizar as deslocações por automóvel, então o imposto que combate a externalidade negativa é o ISP (imposto sobre os produtos petrolíferos). Terceiro, o objetivo da transição energética deve passar por uma renovação da frota automóvel. Para isso, o relevante é como se tributam as viaturas novas, dando incentivos para que se escolham automóveis menos poluentes. Mais uma vez, retomo o primeiro erro: as viaturas que já existem não poluem por si só, apenas quando são utilizadas para deslocações. Novas viaturas é que poluem quando são fabricadas. Alguns estudos (*) têm demonstrado que é o preço dos combustíveis e da eletricidade, bem como os incentivos financeiros, que são os principais determinantes na escolha de veículos elétricos. A disponibilidade de carregadores públicos e o nível de rendimento do país parecem ter menos efeito. Por outro lado, é o preço inicial mais elevado (que a tributação pode ajudar a reduzir), bem como o “total cost of ownership” (o custo total durante a vida útil da viatura) que afastam os consumidores dos veículos elétricos.
  4. O último erro é o da equivalência. Não só o governo liga este aumento do IUC à renovação da frota automóvel por motivos ambientais, mas também à redução das portagens e aos investimentos na rede viária municipal.

Diga-se que se nota um enorme nervosismo no governo e no PS. A ministra da Presidência disse na Renascença que a equiparação entre uma devolução de IRS de uma ordem de grandeza muito significativa, à volta de 800 euros por ano, e um aumento nos impostos sobre o tabaco ou sobre os veículos mais poluentes, que são os veículos mais antigos, é uma falsa equiparação. Sucede que quem fez essa equivalência foi exatamente o primeiro-ministro, na quarta, dia 18, no debate quinzenal no Parlamento: Fazer política implica fazer escolhas. O senhor deputado tem que escolher, prefere mais 25 euros de IUC ou menos 874 euros de IRS.

(*) Münzel, C., Plötz, P., Sprei, F., & Gnann, T. (2019). How large is the effect of financial incentives on electric vehicle sales?–A global review and European analysis. Energy Economics, 84, 104493.

Lévay, P. Z., Drossinos, Y., & Thiel, C. (2017). The effect of fiscal incentives on market penetration of electric vehicles: A pairwise comparison of total cost of ownership. Energy Policy, 105, 524-533.

Barros, V., & Pádua, H. (2019). Can green taxation trigger plug-in hybrid electric vehicle acquisition?. EuroMed Journal of Business, 14(2), 168-186.

Post-scriptum:

Um estudo do Banco de Portugal (https://www.bportugal.pt/page/economia-numa-imagem-231 ) conclui que a medida de “IVA zero” num cabaz de bens alimentares desceu os preços entre 3.5% a 4%. Recorde-se que o IVA baixou de 6% para zero. Ou seja, 2 a 2.5 pontos percentuais da descida ficaram na cadeia de produção e distribuição. Se a medida, números do governo, custa 500 milhões de euros em 2023, isso significa que entre 150 a 200 milhões não foram repercutidos nos consumidores. A literatura económica tem demonstrado que reduções temporárias (ou mesmo permanentes) do IVA não têm um efeito integral na descida dos preços (**). Normalmente, tem um efeito parcial e relativamente modesto. Já tínhamos visto isso na redução do IVA da restauração de 23% para 13% em 2016.

Isso sucede porque o IVA é um imposto que incide sobre o consumidor final dos bens e serviços. A teoria económica diz-nos que quando tal sucede, o efeito do imposto recai totalmente sobre os consumidores quando a curva de oferta é totalmente elástica ou quando a curva de procura é totalmente inelástica. Neste cabaz de bens, não teremos uma curva de oferta totalmente elástica, mas será bastante elástica; e não teremos uma curva de procura totalmente inelástica, mas será bastante inelástica (dado serem bens essenciais).

Adicionalmente, o efeito da redução do IVA nos preços depende também das margens dos produtores/distribuidores e do efeito marginal de reduzir o preço no aumento da procura (que provavelmente é baixo). Se as margens forem altas, as empresas podem optar por reduzir os preços para ter mais vendas e receitas – depende da relação entre a receita e o custo marginal. Se as margens forem baixas, as empresas podem optar por reduzir pouco os preços.

A medida do IVA zero foi ineficiente. Teria sido preferível apoiar o cabaz alimentar das famílias mais carenciadas, ao invés de dar uma “borla fiscal” que em parte ou foi capturada pelos produtores e, na parte que foi transmitida aos consumidores, foi generalizada, beneficiando mais quem tem maiores rendimentos.

(**) Pike, R., Lewis, M. & Turner, D. Impact of VAT reduction on the consumer price indices. Econ Lab Market Rev 3, 17–21 (2009). https://doi.org/10.1057/elmr.2009.139

Nipers, A., Upite, I., Pilvere, I., Stalgiene, A., & Viira, A. H. (2019). Effect of VAT rate reduction for fruits and vegetables on prices in Latvia: ex-post analysis

Barrell, R., & Weale, M. (2009). The economics of a reduction in VAT. Fiscal studies, 30(1), 17-30.

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