É tempo de reconhecer o erro e dar dignidade ao fim de vida de quem já não tem força para exigir o que lhe é devido.

Determinar que os transportes públicos só podem transportar dois terços dos passageiros, quando, por exemplo, a oferta ferroviária não tem elasticidade para dar resposta à procura existente, só faz sentido porque o que conta é o que se anuncia, a realidade é irrelevante.

Só isso explica que se determine que crianças seis ou sete anos tenham de usar máscaras por causa de uma doença que não as afecta de forma relevante.

Eu compreendo o Governo: a partir de certa altura a gestão da epidemia deixou de ser relevante – a mortalidade em excesso deixou de existir em Portugal desde meados de Abril, de acordo com o sistema de vigilância da mortalidade – e a única coisa que interessa é a gestão do medo entretanto gerado.

Actualmente, mais de 30% dos novos casos que são detectados indicam contaminação nos lares, outro tanto no domicílio e qualquer coisa como 5% em estabelecimentos de saúde, ou seja, por volta dos 70% a 75% de novos casos ocorrem nestas situações. Dos outros 25% a 30%, uma pequena minoria ocorre em espaços abertos.

Claro que a amostra está enviesada pelo confinamento e não serve para se tirar conclusões sobre as origens das contaminações se não houvesse confinamento, mas serve para uma conclusão clara: o confinamento não garantiu a protecção das pessoas que vivem em lares.

Luis Aguiar-Conraria tem sido dos poucos que no espaço público têm consistentemente escrito sobre a enormidade de condenar pessoas à solidão com o objectivo de as proteger.

Não só não as temos conseguido proteger –- 40% a 50% da mortalidade, praticamente em toda a Europa, tem ocorrido em lares, o que significa que não é um problema português e não é um problema fácil de resolver – como temos achado que a solidão é uma solução aceitável para defender estas pessoas de uma doença, sem que lhes deixemos alternativa.

Para muitas destas pessoas são as visitas que dão sentido aos seus dias, tirar-lhes isso é simplesmente tirar-lhes o sentido do tempo que lhes resta. Não é possível que, enquanto sociedade, achemos isso admissível.

E o que exigimos ao governo que faça?

Que o Estado invista os seus recursos, de inteligência, organização, pessoas, materiais para conseguirmos, enquanto sociedade, dar respostas melhores aos nossos “mayores” (na feliz designação de Ana Cristina Pereira Leonardo)?

Ao menos discutimos os apoios às famílias que queiram trazer para junto de si os seus, como fizemos facilmente para que as crianças pudessem ir par casa?

Não, o que exigimos é que o Estado monte operações kafkianas para tentar controlar as praias, como se fosse de esperar que o vírus tivesse uma superprotecção em relação ao Sol, ou que as pessoas, por elas, não se conseguissem organizar para estar a dois metros do vizinho de toalha, ou mesmo evitar a praia para quem se sinta ameaçado, ao mesmo tempo que os trabalhadores pouco qualificados dos subúrbios continuarão a viajar em transportes que, mesmo que todas as regras fossem cumpridas, obrigam a uma proximidade muito maior que a da praia.

O medo explica muitas destas opções, claro, mas é um medo socialmente assimétrico.

O espaço público é dominado por burgueses como eu, que podem estar em teletrabalho, em casas razoavelmente confortáveis, sem grande perda de rendimento, ou com perdas de rendimento suportáveis para o património que tenho.

E é esse medo que condiciona governos fracos e populistas, sempre preocupados em não perder votos, atentos ao que possam escrever ou dizer as pessoas que definem os conteúdos dos jornais e das televisões.

A fome mata muito mais que esta epidemia, o desastre social que virá é hoje indesmentível, mas afectam os pobres, lá longe, o senhor que engraxa os sapatos não tem clientes e, provavelmente, não tem rede social nenhuma para além da que lhe dará a família e amigos, mas que importa isso perante o problema do vizinho da toalha ao lado?

É esta assimetria social que tem desequilibrado a gestão da epidemia no sentido de dar mais atenção às praias –- um problema menor e facilmente resolvido pelas pessoas, regras gerais de bom senso e proximidade das autoridades –- que ao problema dos lares, ou melhor, aos problemas da solidão que estamos a somar ao fim de vida das pessoas a quem devemos o facto de andarmos por aqui.

Há, com certeza, alguma responsabilidade do governo –- a opção do governo holandês, suíço ou sueco foram diferentes –- mas a responsabilidade principal é nossa, somos nós, eu incluo-me aí, que achámos que proibir as visitas aos lares era uma opção que evidentemente era necessária para proteger os mais frágeis.

É tempo de reconhecer o erro e arrepiar caminho rapidamente, retirando recursos afectos à definição de regras e regrinhas de uso de espaços públicos, em especial exteriores, para os concentrar onde realmente fazem falta: dar dignidade ao fim de vida de quem já não tem força para exigir o que lhe é devido.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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Os lares e a praia

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