
Os três “ovos” verdes da proposta de Orçamento do Estado
As medidas ambientais da proposta de Orçamento do Estado para 2024 revelam inconsistência, incoerência e insensibilidade.
A proposta de OE para 2024 é exígua em matéria ambiental, podendo destacar-se, fundamentalmente, 3 medidas: as contribuições sobre os sacos plásticos ultraleves, o incentivo ao abate de veículos em fim de vida e a subida do Imposto Único de Circulação para os veículos mais antigos.
Iniciemos a análise pela medida do Governo que impõe aos consumidores o pagamento de uma taxa de 4 cêntimos sobre os sacos plásticos ultraleves usados no transporte de fruta, legumes ou pão.
Esta proposta resulta de um processo tortuoso, quando há 4 anos, a Lei n.º 77/2019, de 2 de Setembro, estabeleceu a proibição dos comerciantes fornecerem sacos plásticos “a partir 1 de junho de 2023”. Esta Lei deveria ter sido regulamentada no prazo de 90 dias após a sua entrada em vigor, o que nunca aconteceu.
Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 78/2021, de 24 de Setembro alterou esta Lei em diversos pontos, designadamente, impondo a obrigatoriedade, a partir de 1 de Janeiro de 2022, da disponibilização pelos comerciantes “de alternativas reutilizáveis” aos sacos ultraleves ou, quando tal não fosse possível, “de alternativas feitas de um único material que não seja plástico”, o que também nunca se verificou.
Não obstante o sector vir alertando para a inexistência de alternativas no mercado a este tipo de sacos, o Governo, só em Maio deste ano, em vésperas da entrada em vigor da proibição em 1 de Junho, decidiu recuar na proibição, anunciando que, ao invés, estaria a estudar a aplicação de uma contribuição…
Veio agora saber-se que esta nova contribuição será acolhida no seio da Lei da Reforma da Fiscalidade Verde de 2015.
Aliada a esta “trapalhada” legislativa, a proposta estabelece que por sacos ultraleves deve entender-se “os que são adquiridos na venda a granel de produtos de panificação, frutas e hortícolas frescos”, sem qualquer especificidade de composição ou espessura, o que augura uma enorme arbitrariedade na sua aplicação, com total impossibilidade de controlo, que levará à inaplicabilidade desta contribuição no terreno. Acresce que não impõe aos comerciantes qualquer obrigatoriedade de disponibilização de alternativas, fazendo recair o ónus desta contribuição exclusivamente nos consumidores.
Na distribuição das receitas, 20% estão destinadas ao Fundo de Modernização do Comércio “para implementação de medidas de sustentabilidade empresarial, designadamente novos modelos de negócio”. O Fundo de Modernização do Comércio “tem como objectivos a modernização e a revitalização de actividades de comércio, de serviços e de restauração, particularmente em centros de comércio com predomínio de comércio independente de proximidade, em zonas urbanas ou rurais”.
Cabe pois perguntar se desde 2019, ano de publicação da Lei, não houve tempo para preparar “novos modelos de negócio” de alternativas a estes sacos?
Esta falta de estratégia e planeamento é um claro sinal de inconsistência.
A segunda medida anunciada consiste no incentivo ao abate de veículos em fim de vida, com pormenores ainda por conhecer, embora já se sabendo que estará ligado à promoção da aquisição de veículos eléctricos.
A verdade é que Lei da Reforma da Fiscalidade Verde de 2015 criou um regime de incentivo ao abate no montante de 4500 euros para quem adquirisse um veículo eléctrico e 3.250 euros um híbrido plug-in e entregasse, para abate, um veículo com 10 ou mais anos com vista à redução de emissões do parque automóvel português.
Posteriormente, o Governo da geringonça determinou através da Lei do OE para 2016 que estes incentivos seriam limitados a 2.250 euros nos carros eléctricos e 1.125 euros nos híbridos plug-in e vigoraria, apenas, até 31 de Dezembro de 2017, sendo reduzidos em 50% a partir de 1 de Janeiro de 2017. No entanto, o Governo voltou a mudar de posição e na Lei do OE seguinte acabou, unilateralmente, com o incentivo a partir de 1 de Janeiro de 2017, não se aplicando sequer a redução de 50% conforme anteriormente fixado…
O Governo que em 2016 reduziu para metade os incentivos ao abate de veículos em fim de vida a quem adquirisse um veículo eléctrico ou híbrido plug-in, e que em 2017 pura e simplesmente eliminou esse incentivo, vem agora propor no OE para 2024 o restabelecimento desse incentivo!
Portanto, o Governo que em 2016 reduziu para metade os incentivos ao abate de veículos em fim de vida a quem adquirisse um veículo eléctrico ou híbrido plug-in, e que em 2017 pura e simplesmente eliminou esse incentivo, vem agora propor no OE para 2024 o restabelecimento desse incentivo!
Esta falta de estabilidade e previsibilidade é um claro sinal da incoerência.
“A talho de foice”, agora que se recupera o incentivo ao abate de veículos, porque não alargá-lo aos tractores e máquinas agrícolas e florestais em ligação aos programas de renovação do parque de tractores agrícolas?
A terceira medida – e talvez a mais mediática e a única que é verdadeiramente “nova”, pois todas as outras foram “desentranhadas” da Reforma de Fiscalidade Verde de 2015 – é o aumento do IUC para os veículos anteriores a 2007.
Sabemos que a tecnologia automóvel tem evoluído na redução das emissões médias de CO2 e é consensual que a tributação automóvel deve basear-se, não apenas na cilindrada, mas também na componente ambiental das emissões.
No entanto, mesmo obedecendo a este princípios, a implementação de novos tributos verdes ou o agravamento dos já existentes, tem sempre que ser:
(i) objecto de avaliação prévia do seu impacto. O Governo deveria ter identificado o parque automóvel abrangido pela aplicação deste aumento do IUC (veículos anteriores a 2007), desse universo, percepcionar qual o número dos veículos que efectivamente circulam e, obviamente, qual a parcela de contributo destes veículos que circulam para o total de emissões provocadas pelo parque automóvel nacional. Nada disso foi, até ao presente, apresentado. A não ter sido feito nenhum estudo de impacto, a proposta é apenas mais uma ideia transformada em imposto para arrecadar mais receita fiscal do bolso destes contribuintes.
(ii) claramente compreendida e aceite pelos cidadãos. Caso contrário, terá o efeito pernicioso de convocar o descontentamento social relativamente à causa da mitigação das alterações climáticas como aconteceu nos protestos dos “coletes amarelos” em França. Na realidade, a aceitação social das medidas ambientais na área fiscal depende, em larga medida, da percepção clara dos seus objectivos numa perspectiva de justa repartição dos encargos.
Criticam-se os recentes protestos públicos dos activistas ambientais que, diga-se, nada contribuem para a difusão virtuosa e para o consenso alargado à volta dos objectivos de transição climática. Mas o Governo respondeu “na mesma moeda”, com uma proposta de aumento exponencial do IUC que – de tão injusta e regressiva socialmente -, também colocará os portugueses contra os objectivos de desenvolvimento sustentável.
Criticam-se os recentes protestos públicos dos activistas ambientais que, diga-se, nada contribuem para a difusão virtuosa e para o consenso alargado à volta dos objectivos de transição climática. Mas o Governo respondeu “na mesma moeda”, com uma proposta de aumento exponencial do IUC que – de tão injusta e regressiva socialmente -, também colocará os portugueses contra os objectivos de desenvolvimento sustentável.
A proposta do Governo ignora que a grande maioria dos proprietários de veículos com mais de 17 anos não trocam de carro porque, pura e simplesmente, não conseguem fazer face a mais esse encargo financeiro acrescido. O mesmo Governo que nos tem bombardeado com justificações para o aumento da inflação (aumento generalizado do preço dos bens e do custo de vida) alicerçadas na disrupção provocada pela pandemia e pelos conflitos internacionais, ignora o mesmo efeito que esses acontecimentos tiveram no preço dos veículos, designadamente nos usados (quiçá os únicos a que estes proprietários podem aspirar e de que dependem para se deslocarem em trabalho).
Esta falta de avaliação e clarificação é um claro sinal da insensibilidade.
Mesmo que a proposta de aumento do IUC seja revista no âmbito da discussão do OE na especialidade – o que se afigura como muito provável – fica, desde já, esse rasto de insensibilidade que abriu um precedente que poderá minar a confiança social e contaminar futuras medidas de natureza ambiental.
Importa, neste contexto, questionar o Governo como pensa, por exemplo, fazer face à alteração da estrutura das receitas fiscais, designadamente com a previsível redução da receita do ISP decorrente da progressiva transição para a mobilidade eléctrica?
As medidas ambientais da proposta de OE para 2024 revelam, pois, inconsistência, incoerência e insensibilidade. São três “ovos” de tinta verde lançados aos portugueses.
Nota: O autor integrou a Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde de 2015
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