Os trilhos da crise. Da loucura ao bom senso

A guerra está a acelerar a vaga inflacionista que já vinha do ano passado. Ninguém, com bom senso, concordará que as empresas podem acomodar todos estes custos adicionais.

Há mais de três gerações que não enfrentávamos um conflito armado na Europa com potencial para escalar para um conflito nuclear e global e uma vaga de hiperinflação que tivesse um impacto tão forte sobre o funcionamento do mercado e sobre o poder de compra das famílias. Um conflito que surge dois anos depois de uma outra guerra surda – e ainda não terminada – contra um vírus que paralisou o mundo, gerando problemas a nível psicológico, social e económico, e afetando pessoas, organizações, mercados, economia e governação.

Nestes últimos dois anos, foi indesmentível o labor que as empresas e as marcas desenvolveram, não apenas mantendo os seus aparelhos produtivos e operacionais em funcionamento, impedindo que aos problemas de saúde que vivíamos se juntassem os do aprovisionamento ou do bem-estar, mas também mostrando uma elevada responsabilidade corporativa junto dos seus colaboradores e uma forte responsabilidade social, no apoio às populações, em muitas circunstâncias, suprindo as brechas a que as iniciativas públicas não conseguiam chegar.

Agora, perante este conflito, o conjunto de iniciativas e ações a que assistimos não cessa de aumentar. Das múltiplas contribuições, a nível local e global, até ao corte de relações económicas e a retirada do mercado da Rússia, anunciado por praticamente todas as grandes empresas e marcas internacionais, as quais, apesar disso, não deixaram de salvaguardar os interesses dos seus colaboradores naquele país.

O conflito, entretanto, está a acelerar, brusca e gravemente, a vaga inflacionista que já vinha sendo mais fortemente sentida desde o início do segundo semestre do ano passado e para a qual, bem antes da eclosão do conflito armado no Leste, vínhamos sucessivamente a alertar.

A inflação, por si só, e em dimensão gerível, nada tem de negativo, ao contrário, por exemplo, da deflação. Demonstra o dinamismo dos mercados, gera motivação para o crescimento, ilustra um relevante primado da procura relativamente à oferta. Mas, como referimos tantas vezes ao longo dos últimos meses, ‘o’ tema para 2022 seria o impacto da disrupção das cadeias de abastecimento e a gestão da inflação que se estava a avolumar nos mais diferentes quadrantes.

Num texto publicado no início do ano, identificávamos as causas do cenário que enfrentamos, desde o forte agravamento dos custos energéticos e de combustíveis, das matérias-primas e materiais de embalagens ao dos transportes e de operação logística. Por trás destas causas, surgem ainda outros efeitos, como os estrangulamentos logísticos, vários eventos climáticos extremos, a reversão e interrupção de fluxos migratórios, uma acrescida complexidade dos movimentos transfronteiriços ou as dificuldades de recrutamento de mão-de-obra.

Quer isto dizer que, antes do conflito e mesmo sem o conflito, os sinais já estavam todos lá. A guerra russo-ucraniana veio naturalmente agravar o problema e, pior do que isso, acelerá-lo fortemente.

Os seus efeitos são globais e transversais, mas olhando para a crise com os ‘óculos’ do setor do grande consumo e focando-os no mercado nacional, diria que não é difícil antecipar efeitos imediatos a quatro níveis, sendo que certamente haverá diversos outros ângulos de impacto.

Desde logo, pela dependência de diversas matérias-primas (mais dramaticamente nos cereais) provenientes de Ucrânia (pelo efeito da guerra) e da Rússia (pelo efeito das sanções económicas), que afeta muitas empresas portuguesas e muitos produtos presentes no mercado nacional. Depois, pela perda de mercados relevantes de exportação (um bom exemplo será o dos vinhos) que Rússia e Ucrânia vinham, de forma crescente, representando para alguns produtos portugueses. A seguir, pelo impacto – comum a praticamente todos os setores – gerado pelo forte agravamento de custos com energia e combustíveis.

E finalmente, por que as disrupções das cadeias logísticas que se vinham avolumando desde há mais de um ano, vão agora sofrer um novo agravamento. Não são apenas os custos de operação que se estão a multiplicar e a agravar a dois e a três dígitos. São origens e destinos que ficaram, entretanto, inutilizados e novas origens e destinos que necessitam de ser operacionalizados. São rotas que têm limitação de acesso ou circulação. São necessidades novas que necessitam de ser satisfeitas e circuitos logísticos que precisam de ser rapidamente reconstruídos.

Tudo isto tem impacto no nosso dia-a-dia, seja em nossas casas, seja nas nossas organizações. Não se trata de uma questão de loucura ou de ausência de bom senso. Trata-se apenas de uma questão de realismo, de sobrevivência e de equilíbrio.

E o problema não se confina ao resultado de uma análise simplista. Tome-se o exemplo do óleo de girassol de que tanto se tem falado nos últimos dias e cuja utilização vai muito além do óleo engarrafado. Existem alternativas? Sim, mas em quantidades mais reduzidas e com propriedades e custos distintos, como o azeite. Mas basta pensar que uma parte importante das utilizações industriais atuais do óleo de girassol se transferirá para o azeite para se perceber que a pressão no mercado e os preços do azeite serão também afetados.

E este mesmo raciocínio poderá ser feito para diversas outras matérias-primas. Para aquelas que são fortemente penalizadas pelo conflito ucraniano, para as que sofreram retrocessos produtivos por força de incidentes climáticos e péssimas colheitas e, obviamente, pior, quando os dois efeitos se conjugam.

Uma inflação acelerada e especialmente se não acompanhada por atualizações salariais equivalentes, representará sempre uma perda de poder de compra por parte das famílias portuguesas, que já era curto quando comparado com o da ampla maioria das famílias de outros países com que partilhamos o espaço da União Europeia. Produtos mais caros e, simultaneamente, menos poder de compra, representarão, do ponto de vista das empresas, uma machadada nas suas vendas e nos seus resultados.

Além disso, não devemos esquecer que se adivinha um novo mau ano agrícola em vários pontos de globo, que nos territórios em guerra dificilmente ocorrerão colheitas este ano (quem irá realizar sementeiras sob a ameaça de bombardeamentos?) e que não são apenas as empresas portuguesas e as que operam no nosso mercado que estão aceleradamente a procurar alternativas de abastecimento e a tentar assegurar preços minimamente competitivos neste contexto, sendo que todos sabemos o efeito no mercado quando a procura é muito superior à oferta.

Há ainda que somar para as empresas diretamente afetadas, mas também para todas as outras, os agravamentos que não cessam dos custos com energia, combustíveis, transportes, materiais de embalagem e, mais cedo ou mais tarde, com os respetivos custos laborais.

Ninguém, com bom senso, concordará que as empresas podem acomodar todos estes custos adicionais. Ninguém apelidará, certamente, de loucura, que pelo menos parte destes agravamentos de custos tenham que ser vertidos para os produtos que estas empresas colocam no mercado.

Uma inflação acelerada e especialmente se não acompanhada por atualizações salariais equivalentes, representará sempre uma perda de poder de compra por parte das famílias portuguesas, que já era curto quando comparado com o da ampla maioria das famílias de outros países com que partilhamos o espaço da União Europeia. Produtos mais caros e, simultaneamente, menos poder de compra, representarão, do ponto de vista das empresas, uma machadada nas suas vendas e nos seus resultados.

Este é também, por isso, um momento em que a atuação do Governo e das autoridades responsáveis será fundamental, seja no apoio ao acesso a mercados alternativos de aprovisionamento, seja no amortecimento dos custos energéticos e com combustíveis.

Aqui, seria fundamental que a opção passasse pela via do apoio direto aos custos ou pela via do encurtamento da correspondente fiscalidade, contribuindo de forma alargada e eficaz para um menor agravamento das estruturas de custo. E é fundamental que isso seja feito sem descapitalizar ainda mais as empresas nacionais, sem incrementar ainda mais os respetivos níveis de endividamento. Em benefício da sua saúde financeira e também do rendimento disponível das famílias, que poderão ver os preços dos produtos menos impactados.

É no ponto de venda, todos sabemos, que o consumidor sentirá o impacto do agravamento do preços, mas é ao longo da cadeia de valor, da produção primária até ao retalhista, que esse agravamento se sente sucessivamente. E é também ao longo da cadeia de valor, nas suas sucessivas etapas, que a mitigação desses efeitos se produz, que a acomodação de custos por cada elo da cadeia permite que, no seu estádio final, quando é colocado à disposição do consumidor, o preço dos produtos possa não refletir, de forma direta, todos os custos agravados que ocorreram ao longo da cadeia. Tal cenário implica colaboração e não fricção, programação e não casuísmo, lealdade e compromisso, e não trocas estéreis de acusações. Implica solidariedade e bom senso e o abandono de loucuras. Porque, no final do dia, é para o consumidor que todos trabalhamos e é o consumidor, com as suas compras, que dá vida e alimenta toda a cadeia de valor a montante. Do supermercado até ao produtor agrícola.

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