Otelo. Herói, terror, traidor

A Revolução é a suspensão da normalidade. E Otelo é o símbolo dessa suspensão elevada a uma potência máxima.

Não uso cravo na lapela nem frequento os desfiles da Avenida da Liberdade. Nem marchas populares, nem manifestações políticas. Mas a morte de Otelo Saraiva de Carvalho vem subitamente despertar um Portugal dividido entre o desejo da normalidade e o saudosismo da aventura revolucionária. O que é surpreendente é que o País continua com um problema político por resolver, um paradoxo político na génese da Democracia Portuguesa que passa pela personalidade de Otelo – a Democracia Directa e Popular em confronto com a Democracia Representativa Parlamentar e Burguesa. Quase cinquenta anos passados sobre o 25 de Abril e o rasgão permanece aberto e por sarar.

No Portugal contemporâneo Otelo continua a dividir e a traçar uma diagonal invisível entre amigos e inimigos, revolucionários e contra-revolucionários, Esquerda e Direita, Progressistas e Reaccionários. Afinal nada está esquecido e tudo continua no subconsciente democrático de uma Nação Europeia e Ocidental, talvez por acaso, talvez pelo fracasso político do Herói Otelo transformado em Traidor Político de todas as causas revolucionárias.

No funeral despido da representação do Estado ainda se consegue ver o poder revolucionário da rua, os sobreviventes e os descendentes que ainda sonham com a aventura de uma nova solução política para as desventuras nacionais. As palavras de ordem atravessam o tempo e espalham-se pela cidade turística com a normalidade rotineira de um reflexo espontâneo – “Viva o Poder Popular!”. A tudo se junta a agressividade e os insultos à Líder Parlamentar do Partido Socialista que, em excursão familiar, foi prestar a última homenagem ao Homem de Abril com um ramo de cravos. Raramente Otelo usava cravos no uniforme.

Otelo foi a sepultar quase na clandestinidade oficial e oficiosa dos Poderes constituídos. O Comandante Operacional do 25 de Abril celebrado pelos hipócritas democratas reconstituídos marchou entre os escombros da sua vida política, solitário, impulsivo, rumo à vitória de todas as guerras perdidas. A República encarou a morte do Comandante do COPCON como um embaraço, com uma vergonha que envergonha, com uma hipocrisia imprópria da Ética Republicana, com o insulto protocolar de uma cadeira vazia. Pelo comportamento de hoje, podem os portugueses imaginar o oportunismo, o cinismo, a dissimulação de muitos políticos vivos e activos em 1974 e 1975 que acompanhavam Otelo como o Herói de uma nova fantasia política. Mesmo no fim, a República foi cobarde com Otelo tal como tinha sido fascinada por Otelo. Esta constatação é válida da Esquerda à Direita.

Fala-se das FP-25 de Abril, fala-se do “Relatório das Sevícias”, fala-se do Golpe que precipita o 25 de Novembro, mas não se fala da realidade de um Processo Revolucionário inesperado, caótico, impreparado, num País sem experiência ou cultura políticas capaz de garantir uma transição política sem desvios ou desmandos. O Mito Fundador da República continua a alimentar a imagem de uma madrugada inteira e clara, adornada de cravos no topo das G3s, uma visão idílica e romântica de quem não conheceu a violência, o sofrimento e a morte nas Campanhas da Guerra Colonial. Revolucionários dos cafés do Rossio sentados entre duas mesas doentes com Agentes da Pide.

No Mito da Democracia Portuguesa existe a veleidade da pureza constituinte e pura saída de uma iluminação racional, resultado de uma construção ordenada de um conjunto de Instituições calibradas e reguladas pela Constituição. Neste mito fundador é como se a Democracia tivesse nascido já como hoje é, sem excessos, sonhos, injustiças, equívocos, paixões, mortes. A Democracia Portuguesa não é obra de um Comité de Funcionários, mas o compromisso político que Otelo sempre recusou na perseguição de um “Socialismo Português” que, com origem nas 24 páginas manuscritas que acabaram no dia 25 de todos os festejos, passando pela Aliança Povo/MFA, prometia a Utopia nunca vista para maravilha do Mundo e desgraça de Portugal. Para Otelo, a Revolução sempre foi moralmente superior ao Regime Democrático.

A desvalorização de Otelo, a desmitificação de Otelo, a humilhação de Otelo, é talvez um acto deliberado no sentido de um certo revisionismo da História Política da Democracia Portuguesa. Uma Democracia que se quer apresentar pura e propriedade de um PS deslumbrado e mentiroso, com a conivência ingénua e ignorante de certos sectores da Direita. Otelo Saraiva de Carvalho não é o Herói puro porque não existem Heróis puros. Se querem pureza política comprem a conformidade de um cão de raça com pedigree carimbado pelo Criador.

A Revolução é a suspensão da normalidade. E Otelo é o símbolo dessa suspensão elevada a uma potência máxima. O Portugal contemporâneo não está reconciliado com este passado de meio século. Se Otelo tivesse ganho, esta crónica certamente não existia. Mas para além das divergências que nos separam, existe a condição de portugueses. Este é o País que nos une e que nos desune. Mas uma Nação que não reconhece o sacrifício de uma geração, não merece ter futuro.

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