País do Natal

A observação das regras para a Consoada são uma nota de humor negro conjugada num Conto de Natal imaginado num retiro ocultista e escrito a quatro mãos por um mágico e por um astrólogo.

O Estado de Emergência está sentado no Trono do Pai Natal. O Presidente da República não fala aos portugueses, infectado que está com o vírus político do candidato. O primeiro-ministro dirige-se aos portugueses, infectado que está com o vírus da moda. Tanto patético é o silêncio como grotescas são as palavras.

O que escandaliza e aborrece é a incúria política de um Presidente escondido e de um primeiro-ministro isolado que olham os portugueses como um elefante olha para uma avestruz e resolvem esconder os dois a cabeça na areia. Os portugueses são confrontados com a imagem ridícula de um poder político que não quer dizer que sim porque não quer dizer que não. Os portugueses encontram-se assim em frente a um enorme espelho do outro lado da linha do comboio, vestidos a rigor para o Natal, decorados com prendas, prendinhas, objectos inúteis, enquanto tentam ouvir a sirene do comboio que se aproxima. O espectáculo é dantesco, se ficam é a vulgaridade do lar e o tédio quotidiano de quem não tem família nem companhia; se vão é o regressar ao lugar quente onde riem os parvos felizes enquanto respiram os pequenos bichos que infectam.

Os políticos sabem em Portugal que o Natal pode matar, porque insistem então em aligeirar medidas e a levantar sanções quando sabem que o que vem a seguir será sempre pior?

A atitude geral do País mais parece a lógica da última ceia, a busca desesperada do último cigarro fumado às portas do corredor da morte, o derradeiro brinde com champanhe para se afogar nos cuidados intensivos, uma última linha de cocaína antes do recolher à clínica de desintoxicação com prognóstico reservado. Tudo tem de ser para hoje porque a pandemia é um exílio, a pandemia é a incerta e vaga inquietação de estar longe. Este sentimentalismo, este crepúsculo do medo, esta procura do sonho tranquilo da infância, são a negação da presente constituição social do Mundo. Perante a ilusão colectiva, o Governo responde devolvendo uma responsabilidade que é sua, ignorando uma função que lhe pertence – a obrigação de salvaguardar e garantir um bem público maior que é o da segurança de uma comunidade de destino.

Depois existem os “idiotas úteis” que subitamente adoptaram as virtudes das liberdades e dos direitos constitucionais apenas para poderem criticar o Governo e para poderem capitalizar os ganhos políticos na contabilidade da mercearia política. Numa metáfora da época, estes políticos comportam-se como as renas no trenó do Pai Natal, a vaca e o burro no Presépio, a estrela imaculada que vai libertar os portugueses do deserto da opressão viral orientando-os na direcção do som das águas entre as árvores e os rios que correm nos corredores dos hospitais. É o absoluto delírio dos irresponsáveis e dos abutres que observam os passos em volta.

A observação das regras para a Consoada são uma nota de humor negro conjugada num Conto de Natal imaginado num retiro ocultista e escrito a quatro mãos por um mágico e por um astrólogo. Pouca gente no cubículo familiar, distância profilática entre familiares próximos, uso intensivo e permanente de máscaras, locais arejados e ventilados pelos ventos frios e húmidos do Inverno, estabelecer um período de permanência máximo à mesa, de preferência mínimo, evitar as multidões na cozinha, uso exclusivo das instalações sanitárias reservadas para um único elemento da família, para os restantes é a utilização normal dos jardins públicos, chegar a horas decentes e sair a tempo do recolher obrigatório. Pode ainda referir-se a confraternização nos “quintais” com troca de presentes simbólicos, como “compotas”, mantendo sempre as distâncias de segurança e o consumo frugal de bebidas indutoras de comportamentos alegres. Em suma, estas regras têm como modelo a celebração de um funeral ou a organização asséptica de uma sala de operações num hospital público. Se estas regras não fossem trágicas seriam simplesmente hilariantes, regras saídas da imaginação de políticos dementes ou de médicos doentes. No entanto, nada disto é sério, nada disto é sensato, nada disto é seguro.

Para acrescentar mais ao caos e à incerteza, o Governo resolve ainda decretar tolerância de ponto para o dia 24 de Dezembro, isto certamente para facilitar a igualitária e equitativa distribuição do vírus pelo território nacional. E no mais perfeito gesto de coerência política, o Governo faz saber que a vacinação vai começar a 27 de Dezembro com um gigantesco lote de 9750 doses da vacina. A República incha os portugueses de orgulho à Pátria.

Num destes dias, desci a Avenida iluminada com as luzes de Natal. A noite estava ofuscada com o brilho solar das cores artificiais e das sombras que se reflectiam nos passeios da cidade. Pareciam criaturas de outro Mundo que colavam às fachadas dos prédios as feições de uma máscara singular. Imaginei o Parlamento vazio, decorado e iluminado até à cúpula como uma enorme Árvore de Natal. A viagem das luzes desconhece a presença do vírus. Na noite não havia sinais de festa nem vestígios de alegria, tão só e apenas as luzes a iluminar o Palácio da Memória. As luzes do dia existem, as luzes da noite prometem. O dia faz viver, a noite faz pensar. Neste Natal, não sei se devo pensar ou se devo viver.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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