Editorial

Pornografia (política), mentiras e (um) vídeo

O vídeo de Mário Centeno celebra o quê, exatamente? A Grécia não regressou à normalidade, não recuperou independência, nem sequer chegou a meio do caminho.

Mário Centeno decidiu celebrar a saída de Portugal… perdão, da Grécia da intervenção externa da troika, mais de 3.000 dias, três resgastes e 300 mil milhões de euros depois, com um vídeo de pouco mais de um minuto em que aparece a ler o teleponto e conclui que os gregos regressaram, a partir de agora, a uma vida normal. ‘Normal’ é mesmo o adjetivo menos adequado, quase ofensivo, para classificar o que era a Grécia no domingo e o que é hoje, terça-feira. Há um caminho feito, há ainda outro, tão ao mais difícil por fazer. E o tempo não é de celebração, mas, no limite, de reflexão. Interna, mas também externa, das autoridades europeias.

Arrumemos, de uma penada, o que é a política interna nacional, ou se quiser um vídeo de pornografia política, que é ver Mário Centeno, o presidente do Eurogrupo, a elogiar a ‘saída limpa’ da Grécia do programa de intervenção externa da troika, isto é, a exposição do Estado grego aos mercados e aos investidores, em comparação com aquilo que Mário Centeno, ministro das Finanças, disse da ‘saída limpa’ de Portugal. Comparação agravada pelo estado em que, ainda, está a Grécia, com um desemprego de 20% e uma dívida pública de 180% e perdeu-se 25% do PIB grego. Portugal, felizmente, nunca esteve nem de perto, nem de longe, próximo destes números, mas todos nos recordamos das palavras duras de António Costa, primeiro, e de Centeno, depois, sobre a ‘saída limpa’ e o regresso aos mercados. Afinal, não foi tão má quanto nos diziam, pois não? Portugal continua a não ser a Grécia.

Vamos, então, às mentiras: O programa acabou mesmo? Nem por isso. A Grécia recebeu, números exatos, 288,7 mil milhões de euros em três programas, além de um enorme perdão de dívida, e quando Centeno afirma que a intervenção externa acabou, quer na verdade dizer que não haverá mais dinheiro para a Grécia. E que, a partir de agora, vai financiar-se diretamente no mercado. Não é de somenos, é um passo importante neste caminho, que deve ser registado, não celebrado. Mas perante este nível de dívida à troika, é evidente que a Grécia está longe de ter uma independência e autonomia nas suas politicas. Fica bem do ponto de vista de discurso político, tenta servir para acalmar os gregos, ainda profundamente divididos sobre a intervenção externa (sobretudo por responsabilidade própria, dos seus políticos, dos sucessivos governos, do populismo de Tsipras, que chegou a ser elogiado por Costa), mas não é verdade. E de Varoufakis, também, que chegou a ser a estrela-pop do PS. Os dois, em seis meses, fizeram a Grécia regredir quase ao início do primeiro resgate. As visitas da troika a Atenas continuarão, e há várias espadas nas mãos dos credores para garantir que a Grécia não regressa ao passado.

Uma coisa Centeno diz com clareza (totalmente ao contrário da narrativa que tinha enquanto ministro das Finanças): Foram, especialmente, os erros próprios da Grécia que a levaram à tragédia económica e financeira, e depois social. Lá, como cá, os eleitores devem procurar os responsáveis dentro de portas, nos governos que ‘martelaram’ contas públicas, que deram o que não tinham e endividaram o país. Os gregos quiseram ser enganados, como os portugueses até 2011. Até ser insustentável.

As responsabilidades do modelo de intervenção externa também não podem ser omitidas, desde logo porque a União Europeia estava ainda longe de estar preparada para gerir uma crise dentro da moeda única. E, com esta distância, é também possível constatar que a primeira preocupação dos líderes europeus foi garantir à Grécia a capacidade para pagar aos bancos e instituições de outros países do euro o que estava em dívida. Isso tornou o primeiro plano absolutamente impossível de executar. Depois, veio um segundo resgate, e só ao terceiro é possível ver um caminho. Os números oficiais estão aqui, os bons e os menos bons, e pode consultá-los.

Portanto, é mentira que a Grécia tenha regressado à normalidade, continua em austeridade, uma austeridade que, na verdade, estava no papel mas que só nos últimos dois ou três anos foi levada em complemento com as reformas estruturais de que o país precisa para recuperar produtividade, competitividade e crescimento económico. Ainda esta segunda-feira, via-se numa reportagem televisiva, o lamento de uma comerciante grega sobre a dureza dos dois últimos anos, que não tinha paralelo nos anos anteriores. Isto diz alguma coisa, tendo em conta que o primeiro resgate já foi há cerca de oito anos.

Sobra o vídeo, que chega a ser constrangedor pela manifesta falta de jeito, e de convicção, de Mário Centeno, uma obrigação política que deveria ter sido evitada, porque tem todos os ingredientes para provocar reações negativas na Grécia, desnecessárias e sobretudo a provocar novas divisões quando o país vai a eleições em breve. Porque a União Europeia deveria também fazer o seu ato de contrição em relação aos últimos oito anos da Grécia.

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