Quando orçamento não rima com crescimento

A resiliência é uma palavra muito na moda, mas eu não quero um Portugal resiliente. E é de crescimento a sério que Portugal precisa.

“De acordo com as projeções apresentadas neste Orçamento do Estado, no biénio 2021-22, prevê-se que o país cresça acima de 10% (4,8% em 2021 e 5,5% em 2022)”, assim se lê no Relatório do OE2022. E lê-se assim mesmo, com o negrito. Já a parte que vem a seguir, explicando que esse crescimento a dois dígitos apenas trará o PIB para os níveis pré-pandemia, está em letra sem qualquer destaque. Mas é bom que a sublinhemos.

Segundo o referido relatório, “prevê-se, igualmente, que já a partir de 2022, o país retome o trajeto de convergência real com a média europeia que se verificou entre 2016-2019”. Qual convergência? Em 2016, o PIB per capita (em paridade de poder de compra) português era 77,1% do da média europeia (a 28 países); em 2019, era de 78,3%; pelo meio, esteve nos 76,5% e nos 77%. É isto a convergência real?! Parece-me bastante ficcional.

Foi precisamente a questão da convergência a motivar um artigo de Luís Aguiar-Conraria, na edição de 1 de Outubro do Expresso. Nele, fala-se dos enganos feitos de verdade: proferem-se frases factuais, mas seleccionam-se criteriosamente os factos a mencionar. O ministro das Finanças diz que “a estimativa de crescimento para 2022 vai ser a mais alta das últimas décadas“. É verdade. O mais recente que encontramos para uma taxa de crescimento real acima dos 5,5% é 1990. Esqueceu-se de referir que quedas do PIB superiores a 8%, como aconteceu em 2020, não aconteciam desde… não sei, que os dados da Pordata começam em 1961.

Mas o engano parece ter convencido os próprios. Talvez isso explique que sejam identificados quatro desafios estratégicos – alterações climáticas, demografia, sociedade digital e desigualdade – e nenhum deles seja a estagnação que marca a economia portuguesa desde o início do século XXI. Ora, quando um país não cresce, o orçamento de Estado transforma-se num instrumento meramente redistributivo. É fazer uma cama para a qual o cobertor é curto e, portanto, tem de se decidir se se tapam mais os pés ou o pescoço.

No entanto, contrariamente ao cobertor, o orçamento de Estado faz a cama em que nos deitaremos. Isto é, as escolhas que o orçamento encerra têm um impacto na evolução da economia. Para 2022, o Governo apresenta a sua proposta de orçamento como amiga do investimento, dirigida às classes médias e focada nos jovens, tendo como prioridades recuperar a economia, aumentar o rendimento, apostar nos jovens e reforçar os serviços públicos.

Quanto à recuperação da economia, é realçado o facto de o investimento público ir aumentar em cerca de 30%. Mal fora se, com as verbas do Plano de Recuperação e Resiliência, ele não aumentasse. E é fácil crescer a taxas impressionantes quando se parte de uma base tão baixa. Desde 2011 que o investimento público nem tem compensado a depreciação do capital, isto é, o investimento público líquido tem sido negativo. Mas mais importante que o montante é a sua aplicação. É fundamental que cada euro seja gasto nos projectos cujos benefícios excedam os custos e que apresentem a melhor relação entre aqueles e estes. Para que sejam verdadeiramente “estruturantes” e no bom sentido.

Aqui, serei suspeita ao achar que a Educação deve ser um sector privilegiado, embora também defenda que muitas das políticas públicas neste âmbito não passam por despesa. Ainda assim, espero que os 900 milhões de euros (90 milhões abaixo do apoio financeiro que será concedido à TAP) devotados ao Plano de Recuperação das Aprendizagens se traduzam numa efectiva compensação dos alunos pelos meses de aulas que perderam. Espero até que possam ir além disso, porque o ensino já tinha bem por onde melhorar antes da pandemia.

E se aumentar as qualificações da população é fundamental por uma questão de crescimento económico, a Educação deve ser igualmente um factor de promoção da mobilidade social. Sim, concordo que reduzir as desigualdades é um dos grandes desafios que temos pela frente. A este título, vale a pena ler o capítulo 5 do estudo “Orçamento, Economia e Democracia”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Nele, o autor, José Tavares, afirma “não só os rendimentos em Portugal são em média mais baixos que os da Zona Euro, como esperávamos, mas a distribuição desses rendimentos em Portugal é extremamente enviesada para os rendimentos baixos. O que se pode chamar a classe média a nível europeu é praticamente inexistente em Portugal“.

Quem é, então, a classe média a que este orçamento diz ser dirigido? É a classe média estatística, que sociologicamente é uma classe baixa. Os rendimentos que permitem ter uma vida com o estilo que associamos à classe média, em Portugal, estão no topo da distribuição. E este é o drama do nosso IRS, que não se resolve com cinco, sete ou nove escalões. É um drama do ponto de vista da justiça social, mas também dos efeitos que a progressividade tem num mundo em que o trabalho – e não apenas o capital – adquiriu mobilidade internacional. Em 2020, os números da emigração continuam acima dos de 2010 e, naturalmente, são sobretudo os jovens quem deixa o país. O que contribui para o grave problema demográfico que temos.

Por isso, medidas que fomentem o regresso daqueles que emigraram, a imigração e a natalidade são bem-vindas. Este orçamento inclui algumas, como o alargamento do IRS Jovem ou o prolongamento do programa Regressar. Mas não tenhamos ilusões: não são 50 euros por mês que farão a diferença na decisão de ter um filho. Para isso é mais importante resolver os problemas de instabilidade laboral e de conciliação entre vidas profissional e familiar e dar aos potenciais pais perspectivas de um futuro risonho para os seus filhos.

Ora, o Orçamento do Estado para 2022 assume-se como um orçamento “que mantém as marcas características dos orçamentos anteriores“. Eu sei que resiliência é uma palavra muito na moda, mas eu não quero um Portugal resiliente, não o quero a recuperar a forma original depois deste choque. Como vimos, a forma do país é há vinte anos a da estagnação. E é de crescimento a sério que Portugal precisa.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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