
Quem dita as taxas de juro, o mercado ou os bancos centrais?
Atualmente, existe cada vez mais uma simbiose entre as decisões dos bancos centrais e o comportamento dos mercados, sobretudo nos mais maduros, nas economias avançadas.
O economista Friedrich Hayek, tal como toda a Escola Austríaca, sempre defendeu — e bem — que as taxas de juro devem ser ditadas pela lei da oferta e da procura de dinheiro. No entanto, por vezes esquecem-se de que as crises económicas existem e não resultam apenas de erros dos bancos centrais ou de mercados estatizados ou excessivamente regulados. Mesmo numa economia verdadeiramente livre, a fidúcia no sistema também pode, por vezes, ser beliscada.
Assim, tal como para dançar o tango são precisos dois, nos mercados monetários, a existência de uma entidade que, além de reguladora, também defina as taxas de juro em função do que o mercado reflete a cada momento parece ser uma postura mais do que razoável. O “laissez-faire, laissez-passer” no seu sentido mais purista pode não ser o mais aconselhável, apesar de a liberdade económica ser, inegavelmente, o principal motor da criação de riqueza. O mercado não está sempre certo e, por vezes, podem surgir crises de fidúcia e, logo, não existir ninguém para emprestar dinheiro, ficando os bons projetos na gaveta e travando o crescimento económico, culminando assim numa recessão e no seu agravamento. Atualmente, existe cada vez mais uma simbiose entre as decisões dos bancos centrais e o comportamento dos mercados, sobretudo nos mais maduros, nas economias avançadas.
Por exemplo, há analistas que defendem que a Reserva Federal dos EUA (Fed) exerce um poder excessivo sobre a economia norte-americana, considerando que funciona como um poder centralizador e estatizante disfarçado num sistema que, em teoria, deveria ser guiado pelos princípios de mercado livre. Ao definir “artificialmente” as taxas de juro, argumentam que o banco central interfere nos sinais naturais do mercado, distorcendo decisões de investimento, contribuindo para a formação de bolhas financeiras e enfraquecendo igualmente o papel do aforrador e do investidor na formação de preços. Esta visão está certa, e as taxas de juro devem, de facto, ser fruto da interação entre quem poupa e quem investe, mas a intervenção de um grupo restrito de tecnocratas, alicerçada naquilo que o mercado reflete a cada momento, pode ser uma mais-valia crucial para evitar a falta de liquidez em momentos críticos de crise de fidúcia.
Atualmente, a relação entre a Fed e os mercados financeiros é uma relação de mútua influência. Já não se trata de um banco central isolado a ditar regras a um mercado passivo. Existe uma espécie de diálogo implícito onde ambos os lados se observam, se antecipam e se ajustam de forma contínua. Aliás, já não se percebe quem segue quem, ou seja, ambos se influenciam mutuamente.
É o mercado e os investidores que seguem a Fed, ou é a Fed que segue o mercado? Na verdade, ambos se influenciam mutuamente e se reequilibram a cada momento, sincronizando as suas ideias sobre a economia, as suas expectativas em relação à economia e às taxas de juro, à medida que vão sendo divulgados os dados macroeconómicos e as expectativas das empresas se ajustam a esses mesmos dados. Um círculo fechado, em que não se sabe bem quem influencia quem — tal como não se sabe quem nasceu primeiro, “se o ovo ou a galinha” —, sobretudo desde que Ben Bernanke, presidente da Fed entre 2006 e 2014, percebeu que a Fed não deve ser o senhor todo-poderoso, o rei, em que uma dúzia e meia de pessoas dita as taxas de juro, mas sim cooperar com o mercado e aferir todos os sinais que este evidencia a cada momento.
A Fed segue atentamente o que o mercado monetário antecipa em termos de evolução das taxas de juro. Nas semanas que antecedem as decisões de política monetária — sobretudo na última semana, sem dados macroeconómicos relevantes ou eventos extraordinários — a Fed tende a alinhar-se com as expectativas do mercado, evitando surpreendê-lo. Quando muito, um mês antes ainda podem ser divulgados novos dados sobre o emprego ou a inflação, divergentes das expectativas, influenciando, assim, tanto o mercado como a própria Fed, mas, no essencial, ambos caminham lado a lado.
No passado, os bancos centrais decidiam de forma mais autónoma, sem olharem ao sentimento dos mercados. No entanto, hoje os mercados estão mais profissionalizados e fornecem dados mais fiáveis, facilitando o trabalho dos bancos centrais. A Fed é, aliás, um dos bancos centrais que mais se destaca nesta capacidade e vontade de ler o mercado, estando bastante à frente do BCE neste aspeto. E não se trata de uma perda de independência — bem pelo contrário, trata-se de uma demonstração de maturidade e humildade. A independência da Fed é hoje evidente, e pode ser plenamente corroborada pelo facto de não ceder um milímetro às pressões de Trump.
No entanto, os mercados não são perfeitos e oscilam de forma imprevisível e raramente refletem com precisão o valor real das empresas, cujos lucros também variam. [Por isso, recomenda-se comprar em momentos de pessimismo extremo (“quando há sangue nas ruas”) e vender quando reina o otimismo exagerado (“a teoria do tolo”)].
Se o mercado antecipa a manutenção ou alteração das taxas de juro, é quase certo que a Fed corresponderá a essas expectativas. Para garantir essa transparência e evitar surpresas, foi introduzido, em 2012, o dot plot— um gráfico de pontos que revela a posição de cada membro da Fed com direito de voto relativamente às suas expectativas para as taxas de juro.
Os rendimentos da dívida pública são também fundamentais para orientar a Fed na sua política monetária. É o triplo mandato do banco central dos EUA: estabilidade de preços em torno dos 2%, pleno emprego e taxas de juro de longo prazo estáveis. Os dois primeiros objetivos são difíceis de conciliar, sendo mesmo considerados paradoxais à luz da curva de Phillips, mas coexistiram durante a década de 2010, impulsionados pelo avanço das empresas tecnológicas como a Microsoft, Amazon, Facebook, Google e Apple. Se os rendimentos do Tesouro dos EUA subirem de forma acentuada — por exemplo, acima dos 5% a 10 anos ou perto dos 6% a 30 anos —, a Fed pode intervir.
Assim, atualmente ainda se verifica aquilo que Hayek defendia, e bem, que é o mercado quem deve ditar o nível das taxas de juro, sobretudo alicerçado nas preferências temporais entre os aforradores, que poupam e adiam o seu consumo, e os investidores, que antecipam esse consumo e as suas necessidades de financiamento, por não disporem de todo o capital necessário para investir nos seus projetos e na criação de emprego e riqueza. No entanto, há uma nuance fundamental em relação ao tempo de Hayek: hoje em dia, o mercado e os bancos centrais — sobretudo a Fed — estão, em larga medida, alinhados. Na época de Hayek, os bancos centrais eram vistos quase como personae non gratae. Hoje, porém, é em grande medida o mercado, em sintonia com os bancos centrais — sobretudo nos EUA, através da Fed — que dita as taxas de juro futuras.
Entretanto, como se sabe, o futuro não é óbvio e ninguém o pode prever, apesar de se fazerem cada vez mais previsões, com mais variáveis e algoritmos cada vez mais sofisticados. A imprevisibilidade do futuro é bem ilustrada pelo exemplo das filas nas caixas dos supermercados: tentamos ser racionais e escolher a que nos parece mais rápida, mas mesmo numa fila com poucas pessoas e poucos produtos, pode sempre surgir um imponderável — como alguém se ter esquecido do cartão multibanco — e acabarmos por demorar muito mais tempo do que seria a nossa expectativa. Por isso, o futuro não é óbvio, e as decisões da Fed, em sintonia com o mercado e vice-versa, são sempre suscetíveis de erro.
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