Queridos partidos, até onde vai a vossa falta de vergonha?

Em qualquer actividade, já tinham desaparecido. Só sobrevivem porque vivem em cartel, numa actividade cheia de barreiras à entrada de concorrentes que vocês levantaram. Vocês são os donos disto tudo.

Queridos partidos,

Sim, sabemos o quanto são fundamentais para a democracia. É em vocês e nos homens e mulheres que vos dão corpo que assenta a base do regime em que preferimos viver. É em vocês, nas vossas propostas políticas e candidatos, que votamos para sermos governados a nível nacional ou local. Prestam, por isso, um serviço fundamental ao país e à democracia, ao fornecerem a organização institucional que permite o funcionamento do regime.

Também sabemos que muitos dos que vos dirigem e integram os vossos órgãos são pessoas sérias, bem intencionadas e com vontade genuína de contribuir para o bem público, defendendo as ideias e os projectos que acreditam serem os melhores para o país – concorde-se ou não com eles. Mas não basta que sejam fundamentais e que acolham boa gente para que sejam decentes.

Vocês estão doentes, cada vez mais doentes. Podem ter a tentação de ignorá-lo, de meter a cabeça na areia e fingir que não reparam, que não percebem os sintomas. Ou, pior do que isso, podem até ter essa consciência – que têm, porque burros ou distraídos é coisa que não são – mas esperar que poucos reparem ou valorizem a vossa moléstia.

A vossa doença, profunda e a requerer tratamento urgente e de choque, está na cultura que foram desenvolvendo e aprofundando ao longo dos anos, ao ponto de se confundir já com o vosso ADN. Só por si isto não seria de uma gravidade extrema. Os partidos, tal como as pessoas, as empresas ou outras organizações, nascem e morrem, reinventam-se, reformam-se. A seguir a uns outros virão, com outras virtudes e defeitos. Isso já aconteceu e vai continuar a acontecer no país, podendo até ser visto como sinal de vitalidade do sistema.

O problema, o grande problema, é que vocês são, até certo ponto, o regime. São vocês que o definem em grande parte, que o moldam, que estabelecem as suas regras, que ditam o que é permitido e o que é proibido, que distinguem o bem do mal e o impõem à sociedade.

Da mesma forma que são fundamentais para a democracia, são igualmente determinantes para a qualidade e a saúde da democracia. Portanto, a vossa doença é a doença da democracia. A vossa cultura contamina, para o bem e para o mal, a cultura democrática. Por isso, o serviço que prestam ao país está inquinado, está podre, fede cada vez mais e está a tornar-se insuportável.

Vocês habituaram-se a viver na total impunidade numa parte importante da vossa vida. De tal forma que parece que já não sabem viver de outra forma.

Colocam-se com frequência acima dos cidadãos. Para estes, regras cada vez mais apertadas, penalizações cada vez mais duras, sistemas informáticos cegos, brigadas de fiscais para tudo e mais um par de botas. Para vocês, o laxismo, os esquecimentos cirúrgicos, as mudanças frequentes de lei para amnistiar a violação das anteriores, a falta de meios de controle e fiscalização que esconde, afinal, a falta de vontade.

Vocês sabem o mal que fazem. Por isso, apesar de estarem sempre dispostos a fazer declarações públicas sobre tudo e mais alguma coisa, é sintomático quando se remetem ao silêncio em matérias que vos envolvem. Se é por cobardia é muito mau. Ao menos que seja por vergonha.

Foi o que aconteceu esta semana, em que ficámos a saber que o Tribunal Constitucional deixou prescrever multas que deviam ao Estado relacionadas com irregularidades na campanha eleitoral de 2009. Em causa estão 400 mil euros, que deveriam ter sido pagos por 12 partidos e 24 dirigentes.

Passaram nove anos e o Tribunal Constitucional não teve tempo de decidir. O Tribunal Constitucional – cujos juízes são nomeados por vocês — ficou à espera da mudança da lei de financiamento partidário que, em segredo, cozinharam no ano passado — lembram-se? Era aquela em que iam dar o “golpe” no IVA – para avançar com as multas. Mas, e é preciso azar, a lei atrasou e o prazo prescreveu. Tudo tão conveniente.

O que está em causa não é montante – mas ainda assim é quase meio milhão – mas o princípio e os sinais que estão a dar ao país. Depois não se queixem da vossa imagem pública nem lamentem que se pense que “são todos iguais”. Porque nestas coisas vocês são todos iguais.

E logo num assunto como este, do financiamento partidário e das campanhas eleitorais. Qual de vocês põe as mãos no fogo pelo que se passa na vossa casa em matéria de dinheiro?

Esta é um das áreas sujas que subsistem no país. Ultimamente a Justiça tem, felizmente, chegado a muitos cantos: futebol, banca, corrupção que envolve governantes, tráfico de influências, até grupos de motards. Mas as finanças dos partidos e dos actos eleitorais, tal como algumas das vossas regalias, continuam por escrutinar. Quem sabe se a operação “tutti fruti” é o primeiro passo nesse sentido, que já vai tardando.

É que indícios tenebrosos não faltam. Basta olhar para alguns de vocês e para as vossas eleições internas. São pagamentos de quotas em atraso por atacado com dinheiro não se sabe vindo de onde, dezenas de militantes com a mesma morada, financiamentos de campanhas não se sabe como nem por quem. Não tenhamos medo das palavras: isto configura casos de fraude eleitoral, de compra de votos. Todos sabem que assim é mas todos se calam.

Se estas são as bases do regime, se a democracia começa dentro dos próprios partidos, podemos daqui medir o pulso à saúde e à transparência de um e da outra. E o diagnóstico não é bom.

E, caros partidos, repararam numa das notícias da semana, investigada pela revista “Visão”? Parece que em Pedrógão, na sequência dos trágicos incêndios do ano passado, alguns cidadãos deram uma morada que não é a da habitação permanente para terem acesso a apoios do Estado que, de outra forma, não teriam.

Se assim foi é um escândalo, não é? Onde é que já se viu isto de mentir sobre a morada efectiva para sacar uns dinheiros aos contribuintes? Esperem, afinal não é isso que se vê todos os dias no Parlamento? Não é isto que fazem alguns dos vossos mais ilustres militantes e dirigentes, tornados deputados e representantes do povo? É provável que alguns cidadãos, mais atentos às notícias, tenham reparado num parecer jurídico da auditora do Parlamento que veio dizer que isto é tudo legal, que cada deputado pode indicar a morada que bem entende para receber subsídio e ninguém tem nada a ver com isso.

O Ministério Público está a investigar as suspeitas de Pedrógão e ainda podemos ter um arguido justificar a sua conduta com o exemplo dos deputados. Se os senhores podem porque não pode o pacato cidadão que quis apenas tratar da casita de férias?

Eu até sou dos que acham que os políticos são, em média, mal pagos quando olho para os ordenados base. Mas já não penso o mesmo quando vejo que alguns deputados duplicam esse salário depois da soma de todas as outras retribuições, muitas destas com um regime fiscal mais favorável. Fica a ideia que o sistema foi montado precisamente para isso: assim recebem muito mais mas de forma mais discreta.

O regabofe é tanto que a revista “Sábado”, num trabalho sobre os subsídios e regalias publicado esta semana e que mais parece uma galeria de horrores, concluía que “há tantas variáveis que é impossível saber ao certo quanto ganha um deputado”. Mas que grande exemplo de transparência, escrutínio, moral e decência que os senhores estão a dar.

Tenham coragem e incorporem todo esse rendimento no salário base. Assim fica claro para todos quanto é que os contribuintes vos pagam e evitam o desgaste público cada vez que aparece mais um caso duvidoso. A democracia, que é cara e merece ser paga, agradece que tenham a frontalidade de o dizer aos eleitores. Ou o vosso populismo não o permite?

Mas mal vamos quando as fragilidades de organização, a gestão imprudente e as faltas de transparência financeira e de legalidade começam logo aqui. Alguns de vocês, partidos, estão irresponsavelmente endividados. Têm a certeza que a vossa estrutura de custos é sustentada pelas vossas receitas legais, que inclui as subvenções pagas pelos contribuintes? Não terão pessoas a mais, campanhas eleitorais demasiado caras e clientelas excessivas? As vossas contas e a vossa contabilidade passariam numa análise básica como a que a máquina fiscal exige a qualquer empresa de qualquer dimensão?

Só podemos suspeitar que não e que são muito convenientes a falta de meios em que vocês colocam a Entidade das Contas e o arrastar dos pés do Tribunal Constitucional, que vocês nomeiam. Submetam-se às regras que impõem, e bem, à mais pequena empresa e ao contribuinte singular e vão ver que a qualidade da governação e da legislação vai aumentar, com vantagens para todos. Se gerem as vossas casas desta maneira como podem gerir bem o país quando chegam ao poder?

Ouço-vos muitas vezes justificar que a vida dos partidos e dos políticos não é fácil. Não me custa acreditar nisso. Afinal, se estamos num país em que a vida dos contribuintes não é fácil, a vida das empresas não é fácil e a vida dos trabalhadores não é fácil, porque haveria de ser fácil a vida dos partidos?

A grande diferença é que a dificuldade das vossas vidas é uma opção vossa. São vocês que ditam as leis, estabelecem as regras e criam mecanismos para viverem na ilegalidade impune quando bem entendem. São cúmplices uns dos outros nas trapalhadas financeiras, sentem-se de uma casta superior que não tem que prestar contas ao povo, mudam as leis que bem entendem para ter mais financiamento público e nomeiam os juízes que deixam prescrever as vossas ilegalidades.

Se ainda assim as coisas vos correm mal, só pode ser porque a incompetência consegue ser muito superior à vossa já enorme falta de vergonha. Em qualquer actividade, já tinham desaparecido. Só sobrevivem porque vivem em cartel, numa actividade cheia de barreiras à entrada de novos concorrentes que vocês mesmo levantaram. O Estado são vocês, são os verdadeiros donos disto tudo.

Mas olhem que estas coisas não duram sempre. Cuidem de vocês. Ganhem vergonha e mudem de vida antes que o povo que vos suporta vos obrigue a mudar.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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