Racismo e Festa nas Bancadas

Não é o fanatismo que gera a loucura, mas a imaginação e a consciência é que geram a maior das insanidades.

A tribo do futebol é o génio da sociedade sem as inibições da civilidade comum. A comunidade imaginária senta-se nas bancadas como quem ocupa território conquistado e agride física e moralmente todos os inimigos. Entre tochas, estandartes, bandeiras e fumos luminosos, os cânticos são disparados numa barragem de artilharia verbal e fatal – matar o inimigo, humilhar o adversário, desprezar a sua humanidade. Os cânticos racistas ecoam pelas arquivoltas do estádio como uma afirmação de superioridade pelo sacrifício simbólico do outro. Brancos na bancada do topo, negros no limiar extravagante de uma espécie inferior. Não é o fanatismo que gera a loucura, mas a imaginação e a consciência é que geram a maior das insanidades.

As palavras são uma arma e este artigo pode e deve ser lido como uma arma. Uma arma porque o desporto desafia todas as velhas questões da pureza, da superioridade, da habilidade, da inteligência, tudo no contexto de uma indústria de milhões regularmente difundida na grande arena dos plasmas sofisticados, com assinaturas mensais em vários canais da especialidade, estrategicamente colocados em bares e salas particulares. Neste contexto, não existe uma reflexão calma e ponderada, uma análise séria e desapaixonada, existe só e apenas a febre de um clima cultural em que a vitória e os milhões ditam as regras e onde o atributo da raça ganha uma importância a tocar a obsessão.

As raças existem porque os indivíduos definem as suas identidades a partir da cor da pele; as raças existem porque os indivíduos agem em função de estereótipos associados a uma dimensão étnica; as raças existem porque as pessoas são diferentes e entendem-se no contexto social da diferença. Mas muito antes do Colonialismo, a ideia de raça é também uma construção histórica e intelectual que vem do Iluminismo, uma época em que Voltaire e Kant invadiam a Europa com as Luzes das Ideias e as Aspirações do Progresso. São os Europeus que começam a categorizar e a classificar as raças, utilizando para tal os recursos da Ciência com o intuito de sistematizar as diversas configurações da Humanidade, uma aventura implacável que gera uma espécie de taxonomia das raças associada a uma clara hierarquia – no topo da pirâmide evolutiva está o homem branco europeu. O projecto reclama-se parte do prodígio da Ciência Moderna.

Na pluralidade das Sociedades Contemporâneas, a questão das diferenças, a configuração das raças, deve continuar a ser objecto de estudo e de investigação, uma obrigação moral face à apropriação política do elemento étnico como justificação legítima para a discriminação e para a agressão. No dilema de ter de convencer um racista declarado, na evidência da raça como a manifestação de uma dimensão natural e biológica, mas também de uma evidência social e de uma construção cultural, é necessário afirmar que não existe qualquer perpetuação de um determinismo biológico de matriz científico. A interacção entre o natural e o social é um domínio demasiado complexo para poder ser resolvido com cânticos de bancada e preconceitos repetidos acriticamente. Deixar estes elementos ao arbítrio da máquina política das ideologias representa a propagação sem limite de uma Política da Identidade, uma política em que o indivíduo é avaliado pelas características naturais ditadas pela lotaria da raça, um óbvio risco para a consolidação do Pluralismo no contexto do Contrato Social.

Na lógica imprescindível do contexto, nenhuma afirmação poderá ser convenientemente entendida e interpretada de modo isolado e dogmático. Veja-se esta imagem do quadro de Banksy intitulado “Devolved Parliament”. Por que razão não existe uma projecção violentamente racista na composição do artista? No entanto, os cânticos que reproduzem o ruído dos chimpanzés nos estádios da Europa são expressões óbvias de uma manifestação racista. Considerando a final dos 100 metros nos Jogos Olímpicos desde o ano de 1980, dos 56 finalistas apenas um atleta era branco. Em toda a história dos Jogos Olímpicos, a prova de natação dos 50 metros em estilo livre teve apenas um único finalista negro. A explicação para estes factos desafia a lógica política da dominação e do dominado, do racismo e do determinismo biológico, desafia a simplicidade da consciência tranquila perante a complexidade da Humanidade e as exigências do politicamente correcto. A conformidade, o silêncio e o fatalismo, são o refúgio de quem não tem opinião.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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