Risco sísmico – andamos a brincar com o fogo

  • José António Sousa
  • 28 Setembro 2022

José António Sousa fala da sua experiência mexicana sobre viver e conviver com grandes sismos para reforçar o alerta sobre o risco sísmico em Portugal e da maneira como não está a ser acautelado.

A 19 de setembro de 2022, pouco tempo após ter tocado nas ruas da Cidade do México o simulacro sonoro de aviso preventivo de terremoto, uma prática que se enraizou, anualmente e só nesta data, nos hábitos desta gigantesca megalopolis de mais de 25 milhões de habitantes, desde o terramoto catastrófico de 19 de setembro de 1985, que ceifou mais de 35.000 vidas, um terramoto de 7.6 na escala de Richter assolou novamente essa cidade ! Sem ser catastrófico, deixou mossa em termos humanos e económicos. Em Lisboa provavelmente tivesse sido arrasador.

A minha filha mais velha, em final de gravidez normal e saudável, sentiu a minha futura neta a mexer-se anormalmente desde uns minutos antes dela própria sentir as ondas sísmicas, e a ginecologista, em cujo consultório ela se encontrava a fazer o exame de rotina, confirmou que existe a crença nos meios médicos de que os bebés, ao estarem numa bolsa de líquido, provavelmente possam senti-lo a chegar antes de nós, como os animais o pressentem também. Nunca ninguém os entrevistou para saber se é certo ou não.

O 19 de setembro passou a ser, desde o fatídico 1985, uma data mística na Cidade do México. A 19 de setembro de 2017, há exatos 5 anos, quando a minha mulher e a minha filha mas nova se encontravam de visita à filha (irmã) mais velha, e a flanar calmamente pela Avenida Reforma, o Champs Elysees mexicano, uns minutos após o habitual simulacro sonoro de aviso de terramoto, uma vez mais a terra tremeu e abalou a cidade com uma força de 7.5 na escala de Richter. A minha filha tem já uma série de clientes na sua clínica de dermatologia que vivem na província e se recusam a vir a consultas no dia 19 de Setembro… Ela própria está a pensar em deixar a agenda vazia nesse dia, e sair da capital, não vá o Diabo tecê-las.

Vivi pessoalmente a terrível experiência do terramoto que arrasou a Cidade do México a 19 de setembro de 1985, às 7.19 da manhã. O epicentro foi ao largo de Acapulco, a mais de 400 km da Cidade do México, e a intensidade deste terramoto inicial foi de 8.1 na escala de Richter (intensidade VIII ou IX estimada na escala de Mercalli). Houve várias dezenas de réplicas de intensidade variável, mas houve uma particularmente forte, de 7.5 na escala de Richter, umas 36 horas depois, que acabou por fazer ruir uma série enorme de edifícios que tinham ficado já seriamente danificados e presos por um fio.

Ambos os terramotos, mas sobretudo o principal, mostraram uma particularidade que nunca tinha sido observada antes. Ondas sísmicas com uma frequência muito reduzida, de 2 segundos apenas, quando o habitual é serem de 6 ou 7 segundos. Conjugado esse fenómeno com uma duração de mais de 3 minutos (uma eternidade, acreditem, dá mais do que tempo de fazer o balanço de toda uma vida, e de nos despedirmos da família e amigos…), e ao facto de ser um fenómeno sísmico misto entre oscilatório (as ruas asfaltadas mexiam-se como se fossem ondas, e estivéssemos a navegar…), e trepidatório, a destruição do material edificado foi gigantesca.

Apesar de o México ter em teoria dos códigos de construção mais estritos do mundo (os “California Standards”), a corrupção nuns casos (tudo o que era edificação governamental, tipo hospitais, escolas, repartições públicas, etc., onde se verificou que em alguns casos se tinha poupado cimento nos alicerces e colunas estruturais de tal ordem, que as paredes esboroaram como areia da praia), e as características anormais deste destruidor terramoto, que levou a uma posterior revisão e aperto significativo do código de construção civil, a cidade ficou devastada em extensas zonas, sobretudo aquelas que antes, no tempo dos Aztecas, eram as águas do lago de Texcoco, seco pelos espanhóis após a conquista.

O famoso cantor Placido Domingo perdeu uma série de familiares num enorme complexo de torres de apartamentos chamado Nuevo León. Houve vários, todos com mais de 20 andares, que ficaram reduzidos, como um sanduíche, a um único andar de escombros junto ao solo! Podia estar horas a contar histórias (reais, não fakes, as fotos que tirei e guardo não mentem…) de arrepiar a espinha sobre o que vi ao deambular pelas ruas da cidade antes de o exército mexicano fechar, por ordem presidencial, partes importantes da capital. Uma experiência que não desejo que nenhum lisboeta tenha de viver um dia.

Algum tempo após o terramoto de 19 de setembro de 1985, quando o balanço dos danos e prejuízos estava feito, e já se possuía a informação técnica correspondente ao evento sísmico, às suas consequências humanas e económicas, escrevi um extenso artigo para a revista Égide, publicada então pela APS, com o título “ Terramoto: algumas considerações sobre a experiência mexicana”.

A primeira grande lição que pude tirar ao ter vivido esta desgraça foi a de constatar a impreparação das autoridades (num território de forte e frequente sismicidade) para se organizarem nos trabalhos de resgate às vítimas por um lado, e de reconstrução da cidade por outro, após concluir a fase de salvamento de humanos e recuperação de corpos primeiro, e de remoção posterior de escombros de edifícios em ruína.

Das recomendações que incluí no artigo, destaco 3 que me parecem genericamente as mais pertinentes:

  • Em áreas geográficas de reconhecida sismicidade (Algarve, Açores, Lisboa…) não se pode descurar a adequação da construção ao risco latente. A construção nova e as remodelações devem obedecer a códigos de construção tecnicamente elaborados, para refletir o aprendido em experiências passadas. A vigilância e fiscalização do cumprimento desses códigos é obviamente mais importante que a própria existência dos mesmos, como se viu no México;
  • É fundamental elaborar um Plano de Emergência Nacional para enfrentar uma catástrofe. Este plano deve ter em conta aspetos tão importantes como o alojamento de afetados, o abastecimento de água potável, alimentos e roupas às vítimas nas áreas afetadas, o restabelecimento de comunicações (SIRESP, lembram-se ….), hospitais preparados, grupos de salvamento bem treinados, tendo à sua disposição de imediato os meios técnicos e humanos necessários (helicópteros a funcionar, e não como os Kamov russos, gruas e Caterpillars de lagartas, cães adestrados, etc.). Este plano deve estar nas mãos de um organismo central previamente designado, que em caso de catástrofe funcione como centro operativo. Preferentemente liderado pelo Almirante Gouveia e Melo (ou um sósia), e não por um boy político …
  • Criação de um Fundo Nacional de Catástrofes cuja finalidade primordial é a de absorver a maior parte dos custos de financiamento da reconstrução nacional. O financiamento para a constituição deste fundo deve ser adequado à realidade nacional de cada pais, havendo já exemplos (escrevi isto há mais de 30 anos…), como o espanhol (Consórcio de Compensación de Seguros), ou o colombiano (Fondo Nacional de Calamidades), que estabelecem vias distintas de constituição, financiamento e funcionamento do Fundo, sendo no entanto iguais os objetivos subjacentes à sua constituição.

Um fundo financeiro obviamente não evita as mortes que advêm da catástrofe mas, como se viu recentemente na erupção vulcânica do Cumbre Vieja, na ilha de La Palma, bem gerido e profissionalmente utilizado, contribui a rapidamente colocar novamente zonas devastadas a operar, famílias que sobreviveram a reconstruir as suas vidas, e portanto a recuperar o tecido económico das zonas afetadas.

Quando regressei a Portugal em 2003, e fiquei a viver em Lisboa, já o meu artigo na revista Égide tinha quase 20 anos, e nada tinha sido feito. Voltei à carga com o tema da constituição do Fundo Nacional de Catástrofes. Passaram outros 20 anos, e o tema continua numa gaveta bolorenta e bafienta de um gabinete cheio de teias de aranha na Assembleia da República (e noutras instâncias também, que poderiam e deviam promovê-lo militantemente).

Um artigo muito interessante (está publicado na net), com o sugestivo título “Sismos em Portugal: estarão os edifícios preparados?”, escrito algures em maio de 2021 pelo Eng. Bruno de Carvalho Matos da Engexpor, focava-se especialmente no tema da minha primeira recomendação. O panorama que pinta não é mesmo nada inspirador de confiança no que provavelmente nos irá acontecer, se um dia tremer a sério em Lisboa ou no Algarve.

O Eng. Matos aventa uma explicação para o problema da falta de seriedade com que o risco sísmico é tomado em Portugal. “A inação em Portugal para enfrentar o problema sísmico de forma preventiva deve-se não só à falta de sensibilidade e capacidade da Administração Pública para implementar, monitorizar e controlar as medidas mais adequadas, mas também à falta de consciência e conhecimento do público em geral.”

Ninguém discorda obviamente desta afirmação. Mas, como dizem os americanos, não é nela que se encontra a verdadeira “root cause”, a verdadeira raíz do problema. Essa encontra-se na confidência que me foi feita por um amigo político, que um dia abordou o tema do Fundo Nacional de Catástrofes com um certo Presidente da República, ao qual foi pedir o alto patrocínio, e que lhe terá dito :”Sabe, o tema é chutado para canto uma e outra vez porque não rende votos”.

Faz lembrar a questão da corrupção desenfreada em Portugal que, longe de se esbater, vai em aumento notório. Isto apesar de vários protagonistas credíveis (Paulo Morais, José Gomes Ferreira, Eng. João Cravinho, saudoso Medina Carreira, QEPD), com acesso aos media de larga circulação (TV, jornais, etc.), já terem a língua curtida de tanto expor situações escabrosas nesta área, sem que nada aconteça. Este tema mereceu mesmo uma reprimenda feia e vergonhosa a Portugal do Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO), organismo dependente do Conselho da Europa, por sistematicamente adiar a implementação das recomendações e boas práticas sugeridas pelas instâncias europeias para aumentar a eficácia do combate a esta terrível lacra. Das 15 recomendações Portugal implementou apenas 3!

Para terminar, sugiro vivamente a leitura atenta do livro “Desastres Naturais. Impacto económico e período de reconstrução”, da Dra. Andrea Kraus, publicado em finais de 2014 pela Vida Económica.

Apesar de ser praticamente o equivalente a pedir à Igreja que retome a novamente a discussão medieval sobre o sexo dos anjos, exorto os nossos políticos a abordarem o tema do risco sísmico com caráter de urgência, seriedade e profissionalismo.

O facto de este tema não render votos deve-se em grande medida à tal “falta de consciência e conhecimento do público em geral” que o Eng. Bruno de Carvalho Matos menciona no seu artigo. A quem compete educar e formar a opinião pública? Os media têm uma enorme e indiscutível responsabilidade. Porque os políticos atuam em função dos “soundbytes” que os media publicam, e os pressionam a adotar em termos de agenda. É o que rende votos.

 

  • José António Sousa
  • Consultor no mercado segurador

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