Sai uma lei à moda do freguês

As mudanças previstas na lei das incompatibilidades vão legitimar situações que hoje são proibidas, um país pequeno, no qual os “family gates” tendem a ser mais frequentes.

A polémica instalada à volta do secretário de Estado que parece estar em incumprimento da lei de incompatibilidades e impedimentos de titulares de cargos públicos remete-nos para o conceito da lei, da liberdade individual e da coerção do Estado. Em “The Constitution of Liberty”, Friedrich Hayek fala-nos do instrumento da lei e do monopólio de coerção autorizado pelos cidadãos ao Estado. Na sua perspectiva, a coerção estatal é um mal, mas é um mal necessário para preservar a liberdade individual de cada um.

Argumenta Hayek que, numa sociedade livre, “a coerção [estatal] não pode ser evitada porque a única forma de a evitar é precisamente pela ameaça da sua imposição” (p.21, “Coercion, however, cannot be altogether avoided because the only way to prevent it is by the threat of coercion”). De seguida, o autor conclui, afirmando que o uso da coerção pelo Estado sobre o indivíduo é minimizado através da existência de regras conhecidas “a priori”, para que o indivíduo não seja nunca coagido, salvo se estiver em violação de regras que são do conhecimento geral (p.21, “the individual need not be coerced unless he has placed himself in a position where he knows he will be coerced”).

Em Portugal, os titulares de altos cargos públicos sabem que existe uma lei de incompatibilidades e impedimentos, cujo propósito é prevenir contra potenciais conflitos de interesses no exercício de funções. Infelizmente, como os abusos são frequentes, é para os disciplinar, e para salvaguardar a liberdade de exercício de funções, que o regulamento existe. A lei é clara e obriga ao preenchimento de uma declaração de interesses, de registo público, na qual se inclui um campo de registo de participação [em] “Sociedades em cujo capital o titular, por si, pelo cônjuge ou pelos filhos, disponha de capital” (art.7ºA, nº4, alínea e).

A lei estipula também as situações de incumprimento, definindo designadamente [que] “As empresas cujo capital seja detido numa percentagem superior a 10% por um titular de órgão de soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas” (art.8º, nº1), ficando sujeitas ao mesmo regime “As empresas cujo capital, em igual percentagem, seja titular o seu cônjuge, não separado de pessoas e bens, os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2º grau, bem como aquele que com ele viva nas condições do artigo 2020º do Código Civil.” (art.8º, nº2, alínea a).

Ora, a mim não me interessa o caso particular da pessoa A ou B, nem se é do partido X ou Y. Interessa-me sim, para minha própria defesa e para defesa dos demais cidadãos, que as leis portuguesas, nesta situação ou noutra qualquer, sejam claras e perfeitamente entendíveis aos olhos do cidadão comum.

No caso da lei em apreço, um pouco ao contrário do que tantas vezes acontece em Portugal, ela não poderia ser mais explícita. É também a lei que está em vigor. E, portanto, as consequências deveriam clarinhas como a água, se é que já não são. O exemplo apontado, que, repito, tomo de forma abstracta, mostra como frequentemente navegamos em águas turvas. No caso português, a solução que tantas vezes nos é sugerida é uma alteração “ad-hoc” à lei, a fim de tornar permitido o que antes não era, a fim de normalizar o incumprimento de uma lei que se entende ultrapassada ou que não nos é conveniente.

Sobre isto, sublinhe-se que o problema não é a modificação de uma lei mal feita – e na verdade não faltam leis mal feitas em Portugal a precisar de modificação –, mas sim a quebra de princípio que isso representa quando o verdadeiro motivo é a legitimação de um vício que a lei pretendia, e bem, disciplinar. Por isso, pode o primeiro-ministro solicitar os pareceres que bem entender à Procuradoria Geral da República que, no final, a melhor jurisprudência é mesmo a letra da lei, que neste caso é cristalina.

O edifício jurídico-legal de um país é condição fundamental ao seu desenvolvimento. A publicação de uma lei tem de assentar num fino equilíbrio entre princípios e práticas, de forma a não condicionar o que não deve ser condicionado, disciplinando apenas o que deve ser disciplinado. Por esta razão, mandaria a prudência que se legislasse pouco, muito pouco aliás, mas que se legislasse bem; permitindo, desse modo, a aplicação de um sábio princípio do direito comum segundo o qual “tudo o que não é proibido, é permitido”.

Trata-se do princípio que subjaz à constituição de liberdade de que nos fala Hayek, que, no mundo imperfeito da realidade humana, é aquele que promove a iniciativa individual e a prosperidade das comunidades.

Naturalmente, há sempre melhoramentos que se poderão introduzir nesta ou naquela lei e há também leis que simplesmente não deveriam existir. Mas, no caso da lei de incompatibilidades e impedimentos, a alteração em curso (porém, ainda não em vigor), ao legitimar situações que hoje são proibidas, apontará no sentido contrário ao que deveria ser permitido em Portugal – um país pequeno, no qual os “family gates” tendem a ser mais frequentes.

A administração pública, pela natureza da responsabilidade que comporta, estabelecida entre governantes e milhões de cidadãos e de contribuintes, tem de ser gerida com base na transparência e em regras estabelecidas. A prevenção de conflitos de interesses tem de estar no topo da prioridade governativa, sobretudo quando se trata de uma relação do tipo agente-principal em que os principais (os cidadãos e os contribuintes) estão frequentemente longe dos agentes (os governantes, da administração central à administração local).

Numa empresa privada, em particular no caso das sociedades cotadas em bolsa – o mais análogo ao do Estado –, o problema endereça-se com a existência de regulamentos internos de prevenção de conflitos de interesses que estipulam as relações de parentesco sob escrutínio e que remetem para órgãos independentes dos órgãos executivos, como por exemplo os conselhos fiscais, a resolução coerciva de eventuais conflitos de interesses.

No fundo, é aquilo que a lei de incompatibilidades e impedimentos procura fazer, remetendo a sua fiscalização para a Procuradoria Geral da República ou para o Tribunal Constitucional. Mas o universo de pessoas relevantes sob escrutínio nas empresas, por maiores que estas sejam, tende a ser incomparavelmente menor do que aquele que resulta da aplicação dos mesmos métodos ao funcionamento do Estado sob o auspício de um tribunal (por mais independente que este seja).

Ainda assim, se quiséssemos aplicar um modelo de governança corporativa ao Estado, a sua aplicação não seria de todo impossível. Quer dizer, seria impossível com os métodos arcaicos que ainda hoje dominam a administração pública portuguesa. Mas não seria impossível com a tecnologia do século XXI (que, em alguns casos, mormente na Autoridade Tributária, já chegou a Portugal).

De facto, do mesmo modo que hoje as autoridades tributárias tecnologicamente mais avançadas possuem meios que, provavelmente, lhes permitiriam a implementação de uma taxação em contínuo de todos os tipos de rendimentos – o futuro que se antevê na taxação –, também a gestão da restante administração pública beneficiaria da mesma modernidade. Assim, a polémica agora estabelecida teria sido evitada se as compras públicas nacionais fossem inseridas em plataforma informática interligada com o registo de interesses da Assembleia da República e apenas executadas após confirmação de inexistência de incompatibilidades.

Teria sido uma chatice para o jornalista que conseguiu o “furo”, mas os cidadãos, a começar pelo secretário de Estado, provavelmente beneficiariam. Tanto hoje como amanhã. De igual modo, a interpretação da letra da lei deixaria de ser de grande “complexidade institucional e social”, como alega o primeiro-ministro a fim de justificar uma eventual escusa à lei.

A digitalização a que vamos assistindo por esse mundo fora é extraordinária e inclui a administração pública. Todavia, em Portugal importamo-la apenas quando ela é conveniente aos lobbies político-partidários que influenciam o aparelho do Estado e a prioridade das políticas públicas. Temos uma Autoridade Tributária formidável na hora de cobrar impostos. Mas uma Segurança Social que chega a demorar mais de um ano para atribuir uma pensão. Temos mecanismos eficientíssimos de controlo de receitas médicas. Mas hospitais públicos que estão falidos e que não prestam contas. Temos sistemas de autenticação digital dos mais avançados do mundo. Mas tribunais que continuam a lamber papel.

Enfim, poderia continuar aqui com mais e mais exemplos que a lista seria extensa. O ponto é o seguinte: em vez de justificar o injustificável, façamos uso da tecnologia para melhorar o controlo das leis que hoje estão bem feitas, assegurando a liberdade das pessoas, e não caiamos na tentação de transformar leis bem feitas (que infelizmente não são muitas) em coisas mal feitas. Quanto ao resto, cumpra-se a lei. Como sempre ouvi dizer, a ignorância da lei não aproveita a ninguém. Salvo melhor opinião.

Nota: Por opção própria, o autor não segue o novo acordo ortográfico

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